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Terra e mar na Planície dos Goytacazes


Por Arthur Soffiati

Das quatro planícies fluminenses identificadas por Hildebrando de Araujo Góes, em 1934, para fins de drenagem, a dos Goytacazes é a maior (“Saneamento da Baixada Fluminense”. Rio de Janeiro: Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense). Ele não incluiu a planície de Jacarepaguá. Mas, se incluísse, a dos Goytacazes continuaria a ser a maior. Seu miolo e formado por sedimentos argilosos transportados pelo rio Paraíba e por outros rios menores, enquanto sua borda é constituída de sedimentos arenosos conduzidos pelo mar. Na borda do miolo argiloso, o mar e o Paraíba do Sul formaram a maior restinga do Rio de Janeiro.

Normalmente, uma restinga é construída com areia transportada por correntes marinhas que encontram um obstáculo duro, no geral pedregoso, como uma ilha, por exemplo. Mas, entre os rios Macaé e Itapemirim, não há formações pedregosas que funcionem como obstáculos de captura de areia. Tanto Alberto Ribeiro Lamego (Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. “Boletim nº 154” da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1955) quanto Louis Martin, Kenitiro Suguiu, José M. L. Dominguez e Jean-Marie Flexor (“Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo”. Belo Horizonte: CPRM, 1997) concordam em considerar o jato do Paraíba do Sul como espigão hídrico que reteve areia em suas margens no ponto de encontro entre duas correntes marinhas predominantes: uma que vem do norte e outra que vem do sul.
Legenda: 1- rio Guaxindiba; 2- rio Paraíba do Sul; 3- lagoa de Grussaí; 4- lagoa de Iquipari; 5- rio Iguaçu (lagoa do Açu); 6- Barra do Furado

A planície do norte fluminense, incluindo as partes argilosa e arenosa tinham as seguintes saídas para o mar: rio Guaxindiba, rio Paraíba do Sul, lagoas de Grussaí e Iquipari e rio Iguaçu. A foz do Guaxindiba se fechava na estação seca, mas se abria facilmente com as chuvas, conforme explica Camilo de Menezes num tempo em que o rio já tinha sofrido alterações (“Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases”. Campos: Ministério da Viação e Obras Públicas/Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense/Residência da Baixada dos Goitacases, abril de 1940). Pode-se imaginar que sua barra permanecia sempre aberta no tempo de Pero de Gois, no século XVI.
Foz do canal Engenheiro Antonio Resende, subtraída do rio Guaxindiba, que se tornou seu afluente

Segundo registro feito por Manoel Martins do Couto Reis, no fim do século XVIII, o rio Paraíba do Sul apresentava dificuldades para a entrada e saída de embarcações vindas do mar ou rumando para ele (COUTO REIS, Manoel Martins do.  “Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goytacazes”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). Mas não se tem notícias do fechamento de sua foz como está acontecendo agora, fim de outubro de 2019. As lagoas de Grussaí e Iquipari funcionavam como braços extravasores auxiliares do Paraíba do Sul. O sistema funcionava assim: do Paraíba do Sul, partia um defluente em tempos de cheias chamado rio Água Preta e nele nasciam os braços auxiliares de Grussaí e Iquipari. Ambos faziam parte de um grande delta. As águas de transbordamento corriam pelo rio Água Preta e entravam com mais vazão no braço de Grussaí. Com menos vazão, no braço de Iquipari. 
Braço principal do delta do rio Paraíba do Sul em 2019. 
Foto de José Carlos Mendonça

No fim da década de 1990, entrevistei Domingos Rodrigues da Silva, idoso asmático que morava sozinho no interior da lagoa de Iquipari. Perguntei-lhe se a lagoa abria a barra só com a força da água doce. Ele respondeu que, no passado, as barras de Grussaí e Iquipari abriam no tempo das águas pelo acúmulo de água doce em seu interior. Indaguei sobre as duas nos dias de hoje. Ele explicou que só com enxadas e máquinas era possível abrir as barras de ambas. Insisti no motivo dessa mudança. Ele morava em suas terras há muitos anos e deu a resposta que eu esperava. Foi o caminho d’água que fez isso. Caminho d’água ou rio da draga é o nome popular do canal do Quitingute, aberto pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, nos anos de 1940, aproveitando o rio Água Preta. Esse canal cortou a ligação das duas lagoas com o rio Paraíba do Sul e ambas perderam a capacidade de abrir suas barras naturalmente.
Trecho final da lagoa de Grussaí, densamente urbanizado. Barra aberta por ação mecânica
Lagoa de Iquipari: o curso longilíneo e sinuoso é forte indicativo de se tratar de um braço do rio Paraíba do Sul

Caminhando pela restinga em direção ao sul, chega-se ao rio Iguaçu, outra saída para o mar. As informações mais antigas sobre elas provêm do “Roteiro dos Sete Capitães” (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas) e GOMES, Marcelo Abreu. Macaé: Funemac Livros, 2012.), redigido no século XVII. Eles vieram ao norte do Rio de Janeiro para tomar posse das terras que requereram à Coroa portuguesa. O documento não fornece informações esclarecedoras sobre sua foz no mar. Couto Reis, no documento já mencionado, escreve que navegou o rio Iguaçu e o rio do Veiga, seu último afluente, e concluiu que ambos não chegavam ao mar. Certamente, ele navegou o Iguaçu no período seco, quando a barra dele se fechava. Fernando José Martins (“História do descobrimento e povoação da cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacases, antiga Capitania da Paraíba do Sul”. Rio de Janeiro: Tipografia de Quirino & irmão, 1868) informa que até afogamentos ocorriam na foz do Iguaçu pela sua correnteza e profundidade. No fim dos anos 1990, entrevistei Amaro Faustino de Souza, que residia na vila do Açu desde criança e que conheceu o rio Iguaçu com a barra aberta para o mar em tempos de cheia. O longo manguezal dentro dele (que agora se chama lagoa do Açu) é indício de ligação permanente ou periódica com o mar. 

Cabe ainda lembrar que o Porto do Açu abriu mais uma saída para o mar ao cortar em 300 metros o rio do Veiga. Mas essa não deve ser levada em conta. Ela serve apenas ao empreendimento, que abrange um estaleiro. O canal aberto contraria todas as características naturais da planície. 
Barra da lagoa do Açu, antigo rio Iguaçu

Em hipotética caminhada em direção ao sul, no século XVI, encontraríamos uma longa e estreita faixa de areia que liga a restinga de Paraíba do Sul e de Jurubatiba, a segunda maior do Estado do Rio. Nessa longa tira de areia, ergue-se hoje a localidade de Farol de São Thomé. A saída natural para o mar, nessa direção, seria a grande lagoa de Carapebus, também semelhante a um rio abrindo sua barra em tempos de cheia, com o mar a fechando durante às estiagens. Ainda não havia a vala do Furado, aberta no rio Iguaçu, no ponto em que ele corria mais perto do mar, pelo capitão José de Barcelos Machado, em 1688. Ele era herdeiro indireto de um dos Capitães e tinha uma grande propriedade rural ao sul da Lagoa Feia. Entre o rio Iguaçu e Barra do Furado, registre-se ainda a Barra Velha, no Lagamar. Mas ela raramente foi aberta.
Término da abertura do canal da Flecha pelo DNOS, na década de 1970. À esquerda das comportas situa-se a lagoa Feia; à direita, o mar

Os séculos passaram. Os colonos de origem portuguesa, animados pela economia de mercado, desmataram os tabuleiros da região para usar as árvores como lenha e madeira. Depois subiram a serra. Sem vegetação nativa, as terras marginais aos rios foram erodidas e transportadas para os leitos, provocando assoreamento. O regime hídrico também mudou. A água das chuvas não ficava mais retidas nas matas. Elas corriam para os rios, provocando enchentes. Sem florestas, também no período de estiagem, não havia florestas para conservar água.

O rio Guaxindiba foi todo seccionado pelas atividades rurais e emagreceu. Só com a abertura do canal Engenheiro Antonio Resende, ligando a lagoa do Campelo a sua foz, ele ganhou um pouco mais de volume. Porém, novos problemas surgiram. 

O rio Paraíba do Sul foi todo esquartejado por represas e perdeu 2/3 de suas águas com a transposição de Santa Cecília para o rio Guandu a fim de abastecer a cidade do Rio de Janeiro. Seus afluentes também foram represados. A bacia foi estiolando. As cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro são muito grandes para ela. E há muitas outras cidades menores ao longo dela. Todas retiram água para consumo público e lançam seus esgotos. Da pujante bacia do século XVI resta hoje um espectro. Já se mostrou o que ocorreu com as lagoas de Grussaí e Iquipari.
Barra do rio Paraíba do Sul em foto de José Carlos Mendonça de fins de outubro de 2019

O rio Iguaçu se enfraqueceu com a abertura da vala do Furado e morreu quando ela foi substituída pelo canal da Flecha, na década de 1940. Sabe-se que a natureza é dinâmica e que não existiam os rios Guaxindiba, Paraíba do Sul e Iguaçu como os conhecemos hoje se retornássemos a cinco mil anos. Mas as transformações que eles sofreram foram naturais e de longo prazo. As transformações atuais foram provocadas pela economia de mercado, sempre desrespeitando limites quando se trata de lucrar. É possível reverter esse quadro lastimável? Sim, é possível. Mas a reversão custará décadas e muitos recursos financeiros, como aconteceu com o lago Honghu, na China, extinto havia 300 anos. Com muito dinheiro e paciência, o governo chinês conseguiu revitalizá-lo. Por simples motivação ambiental? Claro que não. Por se descobrir que a economia de mercado precisa de água.

Resumo da ópera: o rio Guaxindiba está com a foz quase fechada; o braço principal do Paraíba do Sul, em Atafona, foi fechado por areia no fim de outubro de 2019; as barras das lagoas de Grussaí, Iquipari e Açu só se abrem a poder de ferramentas e máquinas; o canal do estaleiro é privado e a barra do canal da Flecha só se mantém minimamente aberta graças a uma draga trabalhando permanentemente.

Está faltando planejamento e continuidade em sua execução. Todos reclamam e acabam imobilizados pela magnitude do problema criado pelo imediatismo de nossa economia.

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1 Comentários

  1. Mais uma vez... brilhante o Professor Soffiati!Que as autoridades escutem o seu permanente refrão, o seu constante grito de alerta!

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