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De Manguinhos à Muribeca


Por Arthur Soffiati

Quem sai de Campos hoje com destino a Cachoeiro do Itapemirim, Marataízes, Vitória e Salvador, pega a BR-101 de automóvel ou de ônibus, entra numa estrada vicinal e chega ao destino. Tudo sobre asfalto e em velocidade que não permite observar bem a paisagem. Aliás, o viajante perdeu o interesse de conhecer a paisagem. Ao volante, ele precisa prestar atenção à estrada. Em ônibus, ele se distrai no celular, na conversa com o passageiro a seu lado, com a cortina fechada e dormindo até o destino.

No século XIX, a viagem era bem diferente. Quem saía de Campos para Vitória ou Salvador ou quem vinha desses lugares para Campos deveria seguir pelas estradas de terra que acompanhavam a costa. Pela margem direita do rio Paraíba do Sul, chegava-se a São João da Barra, atravessava-se o rio na foz, chegava-se ao então chamado sertão de São João da Barra ou de Cacimbas, caminhava-se em terreno escassamente povoado por pessoas europeizadas, chegava-se à esplêndida fazenda da Muribeca, que pertencera aos jesuítas, e rumava-se para Itapemirim. Daí, seguia-se viagem para Vitória e Salvador. A pé ou a cavalo, como fizeram as excursões científicas do alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815, e do francês Auguste de Saint-Hilaire em 1818.

O primeiro desceu o vale do Paraíba do Sul pela margem direita, chegando a São João da Barra, atravessou o rio Paraíba do Sul, seguiu pela praia até Manguinhos e daí até a Fazenda Muribeca. O segundo rumou pela margem esquerda do rio e também chegou à praia, de onde seguiu para Manguinhos e para a Fazenda da Muribeca. Esses dois lugares eram bem mais conhecidos do que hoje.

Atualmente, para alcançar a praia de Manguinhos partindo de Campos, toma-se a BR-101, entra-se na RJ-224, chega-se a São Francisco de Itabapoana, prossegue-se pela RJ-196 até chegar a uma estrada vicinal que conduz a Manguinhos. Para chegar a antiga fazenda Muribeca, volta-se à RJ-196 em direção à Barra do Itabapoana (antiga São Sebastião). Pela RJ-224, atravessa-se a ponte sobre o rio Itabapoana até alcançar a ES-060, em plena restinga de Marobá. Pouco adiante, existe uma estrada vicinal que conduz à Igreja Nossa Senhora das Neves, único prédio restante da fazenda Muribeca.

Em 1815, Maximiliano de Wied-Neuwied partiu de Manguinhos, junto ao mar, no atual município de São Francisco de Itabapoana, para entrar num caminho que muito o encantou. Em suas palavras:

“De Mandinga (ele confunde com Manguinhos) continuamos para o norte, ao longo da costa, marchando pelo amplo areal constantemente molhado pelo mar. O caminho pela areia é bom e suave para o cavaleiro, mas os burros e os cavalos, desacostumados à vista e ao rumor das ondas escachoantes, detestam muitas vezes essa via cômoda. A passagem de uma tropa pela areia branca e lisa, à beira do oceano azul, é um lindo quadro, vista de longe; porque, a não ser que a costa forme uma grande reentrância, pode-se vê-la a tamanha distância, que os animais se reduzem a pequenos. Na língua de terra saliente, onde o litoral suporta o mais violento embate da ressaca, encontram-se pedras perfuradas do modo mais extraordinário pela água. Algumas espécies de batuíras e maçaricos animam a costa, onde só existem umas poucas conchas e sargaços. Depois de termos caminhado algumas léguas por essa praia, uma picada levou-nos a algumas lagoas, rodeadas de eminências silvestres. Toda a nossa tropa estava com uma sede ardente; apeamos, por isso, para nos saciar, mas, com grande aborrecimento nosso, verificamos que as marés tornavam salobra a água dessas lagoas; e dois casebres de barro, a que recorremos para mitigar a sede, estavam abandonados; entretanto, as pitangas, que medravam em abundância nos arredores, atenuaram, até certo ponto, a nossa decepção.”

Pés amarrados com cipó. Método tradicional de os puris e outras nações escalarem árvores. Desenho original de Maximiliano (1815)

Sem dificuldade, percebe-se que Maximiliano escreve bem, pintando quadros com palavras ao estilo romântico. A descrição da praia de Manguinhos é bastante fiel. Considerada a mais bela e aprazível praia de São Francisco de Itabapoana, de fato ocorrem nela matéria mineral derivada do esfacelamento de pequenas falésias que se assemelham a seixos e que, trabalhadas pelo mar, podem apresentar furos. As lagoas, na verdade, são córregos com ligação periódica com o mar. Eles se alagam com a foz fechada. A água é, de fato salobra. Maximiliano está no Sertão das Cacimbas, onde a obtenção de água doce depende do ponto em que é colhida ou de poços (cacimbas) de pequena profundidade. As duas casas revelam que a área era pouco habitada. E, para reforçar mais ainda a solidão, as casas estavam abandonadas.

Saint-Hilaire também passou por aí em 1818. Ele escreve que 

“A fazenda de Manguinhos, onde parei (observação dele em rodapé: “É sem dúvida esse o lugar que foi designado pelo Príncipe de Neuwied sob o nome de Mandinga), compõe-se de algumas pequenas casas cobertas de capim e construídas à beira-mar. As terras circunvizinhas apresentam aspecto de franca esterilidade; mas, como aí cheguei cedo, fiz uma demorada herborização, afastando-me da praia e vi bananeiras, mamoeiros e vasto mandiocais (...) Após ter deixado Manguinhos, para ir pernoitar na fazenda de Muribeca caminhei constantemente, em trecho de 3¹/² léguas, em praia firme porém arenosa e banhada pelas águas do mar. A vegetação que limita essa praia (...) Era uma trama impenetrável de cactos, de monocotiledôneas espinhosas, arbustos em parte dissecados que se elevam a uma altura uniforme e entre os quais se nota um grande número de aroeiras, pitangueiras e feijões da praia. Não encontrei ninguém; não vi casas; nenhum inseto e nenhum pássaro; e minhas pegadas mesmo eram logo apagadas pelo vento e pelas águas do mar; por toda parte profunda solidão que o ruído monótono das vagas ainda tornava mais triste.”  

Para chegar à Fazenda Muribeca saindo de Manguinhos, havia um caminho transversal. Os dois naturalistas vão segui-lo. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied maravilha-se com ele. Em suas palavras, 

“Uma trilha, vindo da costa, cedo nos conduziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta. Cavalgava adiante da tropa, observando as belas plantas e pensando nos tapuias, que algumas vezes infestam essas paragens, quando, para meu não pequeno espanto, vi de súbito, em frente de mim, dois homens escuros e nus. Tomei-os por selvagens no primeiro momento, e preparava a espingarda de dois canos para me defender de qualquer ataque, quando percebi que eram caçadores de lagartos. Os colonos, que vivem esparsos nessas solidões, gostam muito da carne da grande espécie de lagarto denominado teiú na língua geral dos índios da costa. Por isso, partem muitas vezes, entre matagais e florestas, em busca desses animais, levando um par de cães treinados para esse fim. Quando os cães se aproximam de um lagarto, este se lança com a rapidez de uma flecha para a toca subterrânea, que lhe serve de morada, donde é arrancado e morto pelos caçadores. Sendo grande o calor, esses homens, cuja pele do corpo inteira fica tão tisnada pelo sol que podem passar por tapuias, desnudando-se completamente. Carregavam machados e dois lagartos de mais ou menos quatro pés de comprimento, inclusive a longa cauda. Esses caçadores, que conheciam bem a região, asseguraram-nos que estaríamos, em menos de uma hora, na fazenda de Muribeca, onde pretendíamos passar a noite.”

Lagarto teiú, muito apreciado como iguaria no Brasil

Sobre esse mesmo trecho, Saint-Hilaire anotou em 1818: 

“Findamos, entretanto, por distanciarmo-nos da praia e penetramos em uma floresta. Os habitantes da região indicam tão mal os caminhos que, embora seguindo a verdadeira estrada, achamos que nos havíamos perdido. O temor de dormir ao relento atormentava-nos menos que o de morrer de sede, porquanto durante todo o dia apenas encontramos água doce em um pequeno lago pantanoso. Após várias conjecturas tomamos a deliberação de voltar atrás e, pelo mais feliz acaso encontramos um viajante, que nos confirmou o caminho que seguíamos (...) Durante muito tempo continuei a atravessar a floresta e, de repente, deparei um lugar descoberto, no meio de vasta plantação onde trabalhavam numerosos negros. Avistando um pequeno brejo, dele me aproximei na esperança de encontrar algumas plantas. Um velho mulato que fiscalizava os negros viu-me de longe e correu ao meu encontro, tendo uma cabaça às mãos. ‘Se procurais água, a do brejo é salgada; mas, eis aqui uma muito boa, bebei à vontade”. 

Novamente a confirmação de que essa área fazia jus ao nome “Sertão das Cacimbas”. Poucos lugares ofereciam água doce na superfície. Ela era encontrada em poços. 

Já perto da Muribeca, Maximiliano escreve uma das mais belas páginas do seu diário:  “Na escura e imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo ‘Convolvulus’ de flores azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura.  O pio forte e grave do ‘juó’, em três ou quatro notas, é ouvido, nessas matas imensas, em todas horas do dia e mesmo à meia-noite (...) Depois de atravessada a floresta, encontramo-nos em extensas plantações recentes; de uma elevação, onde se viam troncos por terra." Era a famosa Fazenda da Muribeca. “Aí, em todas as direções, divisamos um quadro encantador da majestosa solidão, às margens do Itabapoana, que, como fita de prata, vai coleando entre as selvas umbrosas, e corta uma planície verdejante, em cujo meio se localiza a grande fazenda de Muribeca, cercada de vastas plantações. Em todo o redor, florestas imensas limitam o horizonte”.

Caçadores. Desenho original de Maximiliano de Wied-Neuwied

Quanto a Saint-Hilaire em 1818: “Logo me aproximei da fazenda de Muribeca, que eu havia visto de longe, ao sair da floresta. É construída ao pé de algumas pequenas colinas que, a sudoeste, limitam uma planície estreita e muito comprida, cercada de matas virgens. Um engenho de açúcar, a casa do proprietário e um grande número de casas de negros, formam o conjunto da fazenda. A planície é coberta de um relvado verdejante; numerosos animais pastam em liberdade, e o pequeno rio Muribeca (Itabapoana) irriga-a em toda a sua extensão, formando sinuosidades; enfim, para os lados de NW o horizonte é limitado por uma cadeia de montanhas que se descobre ao longe. Esse risonho lugar realiza o ideal das alegres solidões outrora cantadas na poesia pastoral.”

Hoje, São Francisco de Itabapoana é uma pálida sombra do belo ambiente que se via há duzentos anos passados. Não se trata de saudosismo ou de congelar o tempo. Não podemos mais voltar, mas podemos criar ambientes protegidos tanto no litoral quanto às margens do Itabapoana, em homenagem aos dois ilustres naturalistas que por lá passaram e tanto contribuíram para o conhecimento de um ambienta natural hoje tão degradado e empobrecido.

Bibliografia:

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito de Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1974.

WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP,

1989.


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