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A grande seca atual do sul de Portugal


Por Arthur Soffiati

Rede hídrica do sul de Portugal

  Portugal começou com o Condado Portucalense, integrante do reino de Leão, no século IX d.C., ao noroeste da península Ibérica. Sua expansão dirigiu-se ao sul, rumo ao rio Tejo, travando lutas contra os mouros. Daí, a região abaixo do rio Tejo chamar-se Alentejo. Mais abaixo ainda situa-se o Algarve, que mostra em seu nome a origem árabe.

Tanto o Alentejo quanto o Algarve são regiões irrigadas por pequenos rios. Os dois maiores são o Sado e o Guadiana. O primeiro nasce numa altitude de 230 metros e tem extensão de 180 quilômetros, desembocando no mar. Para fins de comparação, o rio Guandu tem 108 quilômetros. No conjunto dos rios brasileiros, o Sado é pequeno. Sua larga foz situa-se próxima à do rio Tejo. Podemos dizer que os dois formam uma grande península onde se ergue Lisboa e Setúbal. O que os portugueses consideram estuários do Tejo e do Sado mais parecem reentrâncias da costa em que os dois rios desembocam. Por comparação, a baía da Guanabara não é a foz de um rio como o Inhomirim, mas uma reentrância da costa em que o mar penetra e em que o pequeno rio desemboca.  

A atividade pesqueira é grande no Sado, tendo merecido estudos do antropólogo José Colaço, da UFF. Ele e o Mira são os únicos rios lusitanos a desembocar no mar com curso de sul para norte. Seus afluentes na margem esquerda são as ribeiras de Campilhas, da Comporta, de Garona, de Grândola e o rio Arcão. Pela direita, destacam-se as ribeiras de Roxo, da Figueira, de Odivelas, de Alcáçovas, de São Cristóvão, de São Martinho, da Marateca e o rio Xarrama. Ao todo, sua bacia hidrográfica compreende uma área de 7.692 km², sendo a maior inteiramente em território português, embora formada por pequenos rios. O volume hídrico da bacia também é pequeno. O desnível da bacia tem apenas 230 metros entre a nascente e a foz. Por isso, seu curso é lento e sua foz é larga. Além do mais, o Alentejo e o Algarve são regiões naturalmente áridas por influência do deserto do Saara, no norte da África. Pela lógica do além Tejo, o Saara seria além Mediterrâneo.

Em direção ao sul, encontra-se o pequenino rio Mira, que nasce a 470 metros de altitude e percorre 130 quilômetros, lançando-se no mar. Ele regula com o rio Macaé, considerado de pequena extensão no contexto do Brasil. Pela baixa declividade entre a nascente e a foz, trata-se de um rio muito antigo. O desgaste do seu leito, produzido pela erosão, revela essa antiguidade. Ao longo do seu curso, foram construídos os reservatórios (chamados de albufeiras em Portugal) de Santa Clara e de Corte de Brique, na ribeira afluente de mesmo nome. O de Santa Clara tem capacidade total de reservar 485 hm³, sendo um dos maiores da Europa. Os reservatórios cumprem dois papeis: o de retirar água do rio nas suas enchentes e de acumular água para usos múltiplos em tempos de estiagem. O Mira é sujeito a transbordamentos, assim como o rio Mondego, ao centro-norte de Portugal. 

A largura de sua foz alcança 150 metros, outra caraterística de rios com baixa declividade, pois a água corre mais lentamente e, encontrando a água do mar, não apresenta força suficiente para enfrentá-la. Daí se alargar e mostrar bancos de areia com a maré baixa. Da vila de Odemira à foz, foi criado o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. 

Em seguida, rumo ao sul, corre o pequeno rio Arade, com apenas 75 km. Nasce a 481 m. de altitude. Corre no Algarve. É outro que nasce na serra do Caldeirão e desemboca no Atlântico. No século XVI, ele ainda era navegável até Silves, onde se instalou um importante porto. Com as atividades agropecuárias e a urbanização, seu leito foi assoreado. Hoje, apenas barcos pequenos conseguem navegar até Silves. A sua navegabilidade no passado facilitou a dominação árabe dessa localidade. O estuário do Arade ainda é rico em termos biológicos, a despeito de todas as alterações antrópicas sofridas em seu vale da nascente à foz.

O rio ou ribeira Seixe, mais ao sul, tem um curso de apenas 6 km, desembocando no Atlântico. A beleza do seu curso final justificou sua inclusão no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Vários núcleos urbanos ergueram-se às margens do pequenino rio. No litoral, junto à foz, situa-se a bela praia de Odeceixe, com suas magníficas falésias rochosas. Uma das atividades mais rentáveis do sul de Portugal é o turismo. 

Depois de uma zona pantanosa no Algarve, chega-se à foz do rio Guadiana, em parte usado como fronteira entre Portugal e Espanha. Ele nasce a 1700 metros de altitude, nas lagoas de Ruidera, e deságua no oceano Atlântico depois de percorrer 829 km. É o quarto maior rio da península Ibérica, mas menor que o rio Paraíba do Sul. Sua nascente se situa em território espanhol. Na foz, do lado português, ergueu-se a cidade de Vila Real de Santo Antônio, enquanto que no lado espanhol fica a cidade de Ayamonte. 

No estirão português, foi construída a barragem de Alqueva, que formou o maior lago artificial da Europa, com 250 km². Mesmo assim, são sérios os problemas causados pelas estiagens. Elas se tornam mais graves a cada ano. 

Em sua foz, existem campos salinos protegidos pela Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo Antônio. Ocorrem onze espécies de peixes autóctones da bacia do Guadiana, o que vale dizer que só existem nela e em mais nenhum outro lugar do mundo. Mas há também onze espécies exóticas, ou seja, introduzidas. O grande problema que o rio enfrenta é o jacinto-de-água, conhecido no Brasil como aguapé, planta indicadora de poluição orgânica. Têm sido vultosos os investimentos para erradica-la, mas ela resiste.

Como se pode ver, não só os rios brasileiros enfrentam problemas. Os da Península Ibérica, principalmente, são malcuidados. Por vários deles cruzarem dois países, acabam recebendo tratamento diferente e sofrem uso excessivo.

Rios do sul de Portugal

O grande problema hídrico do Alentejo

Cabe observar, em princípio, que a orla do Mediterrâneo apresenta clima seco desde a origem do Holoceno, há cerca de 10 mil anos passados. Do lado africano, estende-se o deserto do Saara, o maior do mundo. Só na costa mediterrânica, a aridez se reduz um pouco. Do lado europeu, essa secura também é conhecida de longa data. Sua origem é natural.

O motivo mais amplo dessa aridez progressiva são as mudanças climáticas naturais e provocadas por ação humana. O déficit hídrico em Portugal é muito acentuado. Apenas uma pequena área na margem esquerda do rio Douro entra na classificação de normal, ou seja, com umidade suficiente para a vida em limites confortáveis. Depois, as áreas atingidas por seca fraca aumentam. A maior parte do território português vive sob seca severa. Daí os grandes incêndios que o assolam durante o verão. O Alentejo é a região mais árida do país, vivendo sob seca extrema.

Mapa da seca em Portugal

Além dos poucos e pequenos rios a correrem no Alentejo, quase todos foram represados em mais de um ponto, alterando seu regime hídrico. As barragens formam grandes lagos (chamados de albufeiras) e reduzem os pequenos rios depois delas a filetes de água. Dentro de Portugal, o Alentejo talvez tenha a maior concentração de albufeiras. Só na bacia do rio Sado, foram construídas dez barragens. O pequeno rio Mira alimenta a albufeira de Santa Clara, um dos maiores lagos da Europa.

Albufeiras (lagos artificiais) na bacia do Sado

A vegetação nativa foi progressivamente removida para dar lugar a lavouras, pastos e cidades. Trata-se de um processo antigo que foi se intensificando no século XX. Embora as atividades rurais sejam tradicionais na Europa, a substituição dos ecossistemas nativos pelos ecossistemas antrópicos tem sido radical. A bacia do Sado, por exemplo, vem sendo intensamente explorada pela agricultura tradicional. O cultivo do arroz, entre elas, exige grande volume de água. Na pecuária, existe a criação do porco alentejano, uma raça nativa do Mediterrâneo e muito apreciada.

Mas o que vem agravando a crise hídrica é o cultivo de frutas vermelhas e do abacate (este no Algarve). Elas são cultivadas por grandes empresas, inclusive multinacionais, e consomem muita água. Há quem diga que 75% da água destina-se a 25% de agricultores com apoio do governo. Como vigora um regime de cotas, muitos pequenos produtores ganham dinheiro vendendo sua parte às grandes empresas agrícolas a altos preços. E a produção dos frutos vermelhos também absorve nutrientes do solo, aplica doses elevadas de fertilizantes e agrotóxicos e utiliza muito plástico para cobertura dos campos plantados. Essas grandes empresas podem mudar de lugar e país, caso esgotem-se os recursos necessários à agricultura. Em resumo, cerca de 80% da escassa água do Alentejo é exportada na forma de framboesa. E o Ministério da Agricultura de Portugal incluiu essas frutas como culturas permanentes, enquanto as pastagens tradicionais não contaram com esse benefício.

Existem ainda os campos de golfe. No Algarve, há 40 campos desse esporte. São extensos e exigem água. No entanto, seus mantenedores garantem que não usam água destinada à agropecuária. Não se pode dizer que Portugal careça ainda de uma estrutura governamental para regular e proteger o meio ambiente. Existem a Agência Portuguesa do Ambiente e o Sistema Nacional de Informação dos Recursos Hídricos, além da gestão de bacias. Mas essa estrutura tem se mostrado insuficiente ou ineficiente porque as atividades produtivas parecem ter ultrapassado a capacidade de suporte dos ecossistemas. 

Albufeira de Santa Clara bem abaixo do nível de conforto, no pequeno rio Mira, Alentejo 

As propostas para solucionar a crise hídrica do Alentejo parecem mirabolantes: construir novas barragens nos pequenos rios da região (o que agraria mais a escassez hídrica); dessalinizar água do mar; transpor água da bacia do Guadiana, também em situação crítica; abrir um grande canal norte-sul do país para transpor água das bacias aquém Tejo. A organização Plataforma Água Sustentável (PAS) entende que se trata de medidas megalômanas e propõe o tratamento das águas fluviais e residuais.

O problema da seca não se restringe a Portugal. Examinando o sul da Europa, verifica-se que as penínsulas Ibérica, Italiana e Grega enfrentam idêntico problema. Elas estão sendo saarizadas. Mesmo as chuvas volumosas que abalaram o norte da Itália recentemente, as maiores desde que as medições começaram a ser feitas, representam outro tipo de fenômeno climático extremo que faz grandes estragos mas dura pouco. A seca dura mais e está assolando o chifre da África e o cone sul da América do Sul. Europa, África e América estão sendo afetadas por secas estruturais que não podem ser enfrentadas com medidas conjunturais e paliativas. O chamado progresso ou desenvolvimento está cobrando seu preço.


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