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Um pedaço importante de deserto


Arthur Soffiati


Guardo memória de uma tira de quadrinhos em que o Pato Donald dorme numa viagem de ônibus com um sobrinho no colo. Entra uma pata com sua filha, uma patinha atraente. Querendo ser gentil, o sobrinho cede o colo à patinha. O colo não é dele nem dela, mas o sobrinho cede o que não lhe pertence sem consultar o dono do colo.


Já encontrei uma história parecida com essa, só que de consequências trágicas. Em 1917, no fim da Primeira Guerra Mundial, quem mandava no mundo era a Inglaterra. Por pressão de judeus ricos, Arthur James Balfour, secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, envia uma carta ao Barão Rothschild, poderoso banqueiro judeu e líder da comunidade judaica do Reino Unido, dizendo que o governo britânico via com bons olhos a instalação de um lar nacional judeu na Palestina. 


A guerra ainda não havia acabado. A Palestina pertencia ao Império Otomano, que lutava ao lado da Alemanha e do Império Austro-húngaro contra Inglaterra, França e Estados Unidos. Neste caso, o Pato Donald é o império Otomano. Seu colo é a Palestina. Balfour é o sobrinho e a patinha são os judeus sionistas. Como alguém disse com propriedade, um primeiro país (Inglaterra) oferece a um futuro segundo país (Israel ainda não existia) terras (Palestina) de um terceiro país (Império Otomano).


Agora, entra em cena um outro Donald que não é o pato, mas o Trompa. No apagar das luzes do seu triste governo, ele está tentando conseguir o reconhecimento de Israel pelos países árabes. Primeiramente, mudou a sede da embaixada dos Estados Unidos de Tel Aviv para Jerusalém, de certa maneira incentivando a expansão israelense nas terras palestinas da Cisjordânia. Um pouco mais do que Israel surrupiou até agora do povo palestino. Egito e Jordânia reconheceram a existência de Israel há bastante tempo. Recentemente, os Emirados Árabes, o Bahrein e o Sudão estabeleceram relações diplomáticas com Israel por mediação do governo dos Estados Unidos.


Agora, Donald, não o pato mas o Trump, medeia o relacionamento diplomático de Marrocos com Israel em troca de outro reconhecimento: o do direito do Marrocos sobre o antigo Saara Espanhol. Em 11 de janeiro de 1976, escrevi em “A Notícia”, extinto jornal campista dirigido pelo saudoso Hervé Salgado Rodrigues: “Pretendendo se apossar do Saara, colônia espanhola da África com as maiores reservas de fosfato do mundo, o Marrocos e a Mauritânia firmaram um acordo para dividi-lo. O rei marroquino, Hassan II, planejou uma grande marcha pacífica de 350.000 pessoas, a fim de penetrar no território cobiçado e anexá-lo. Contudo, a Espanha, a Argélia e a Frente Polisário, movimento nacionalista e socialista saariano, decidiram não aceder às reivindicações marroquinas. Apesar da resistência, Hassan II realizou a marcha penetrando superficialmente no território saariano. Desistiu dela e optou pelas negociações diplomáticas. Kurt Waldhein interveio, apresentando uma proposta para a descolonização, mas o Marrocos e a Mauritânia concluíram um acordo com a Espanha, em novembro, pelo qual esta cedeu o Saara aos dois países. As relações entre Marrocos e Argélia deterioraram-se e o perigo de uma guerra no Magreb tornou-se iminente. De um lado, o Marrocos e a Mauritânia; de outro, a Argélia e a Frente Polisário com a adesão da Líbia.”

Antigo Saara Espanhol, hoje República Árabe Democrática do Saara

A situação do antigo Saara Espanhol continua no impasse de 44 anos atrás. A Frente Polisário, grupo nacionalista, quer a criação de um novo país, cujo solo é desértico, mas com grandes reservas de fosfato no subsolo. Fora isto, a outra grande riqueza do território é a pesca marinha. A Argélia apoia a criação de um novo país no território descolonizado e o Marrocos quer ampliar seus domínios incorporando o antigo Saara Espanhol. O pato é o povo do Saara. A patinha charmosa é o Marrocos, que deseja sentar no colo de Donald. O sobrinho é o outro Donald – o Trump –, que oferece o colo alheio para se tornar simpático aos olhos da bela patinha.

Território arenoso do Saara


Relações diplomáticas são instrumento de paz. Devemos reconhecê-las desde que justas. Israel não pode aceitar o estabelecimento de relações de paz com países até então inimigos sem reconhecer o direito palestino a um Estado e sem devolver terras da Cisjordânia em que está se expandindo com assentamentos judeus. Embora eu não goste muito da figura do Estado Nacional e entenda que já existe um número muito grande dele no mundo, defendo primeiro a justiça. Em segundo lugar, reconhecer que Marrocos tem direito sobre o antigo Saara Espanhol é acentuar um conflito já existente que agora pode se transformar em guerra aberta. A nacionalista Frente Polisário deve se aproximar mais da Argélia, que pode transformar uma guerra fria com Marrocos em guerra quente. Essa é uma batata fervente que Donald Trump deixa para o velho Joe Biden esfriar e comer.

El Aaiún, capital da República Árabe Democrática do Saara


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