News

6/recent/ticker-posts

Rios e mangais de Goa, Damão e Diu


Por Arthur Soffiati

Mangal é um ecossistema formado por plantas completas (raiz, caule, folha, flor, fruto e semente) que se adaptaram à agua salobra na zona intertropical conforme o gradiente de salinidade. O mangal mais comum é o que se desenvolve em foz de rios. O encontro da água doce do rio com a água salgada do mar forma água salobra. Esse ambiente é conhecido como estuário. Sua riqueza biológica é grande. Estima-se que a adaptação de plantas ao regime de marés começou na região correspondente ao Sudeste Asiático atual, dali se alastrando para todo o mundo tropical, ao mesmo tempo em que se diversificavam. O número maior de espécies, contudo, encontra-se na Ásia e Oceania, bem mais próximas do ponto de origem. Ao passar para o oceano Atlântico, o número de espécies se reduziu.

Portugal incluiu esse ecossistema em sua história a partir do século XV, com a expansão marítima. Os diários de bordo dos navegadores que desceram o oceano Atlântico e entraram no Índico registram plantas nas costas marítimas e estuários sem dar importância a elas. Afinal, seu valor econômico era conhecido apenas pelos povos nativos de cada continente. Aos poucos, elas são incluídas na economia de mercado criada pelos europeus, gerando inclusive conflitos entre ricos e pobres.

Em todas as colônias fundadas por Portugal, desenvolvem-se mangais: Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Damão, Diu, Malaca, Macau e Timor. Portugal só os conhecia pela literatura grega e latina. Foi conhecê-los ao vivo quando fundou colônias na zona intertropical.

Igreja de São Caetano – Goa Velha, margem esquerda do rio Mandovi - FOTOS: Do Autor

  As costas ocidental e oriental da Índia têm uma das áreas cobertas de mangais mais extensas do mundo. Os estuários formados pelos rios de Goa, Damão e Diu abrigam mangais, por mais que condições adversas a eles sejam criadas pelo “progresso”. As espécies identificadas são “Rhizophora mucronata”, “Rhizophora apiculata”, “Bruguiera gymnorrhiza”, “Bruguiera cylindrica”, “Ceriops tagal”, “Kandelia candel”, “Avicennia officinalis”, “Avicennia marina”, “Avicennia alba”, “Sonneratia alba”, “Sonneratia caseolaris”, “Aegiceras corniculatum”, “Excoecaria agallocha”, “Acanthus Illicifolius” e “Lumnitzera racemosa”. Goa, Damão e Diu constituíram-se na costa oeste da Índia, área irrigada por rios que comumente se alargam na foz, como os rios Tejo e Sado, em Portugal. De norte para sul, os maiores são Tiracol (27 km), Chaporá (21 km), Mandovi (81 KM), Zuari (34 km), Sal (40 km) e Saleri (4 km). 

Rios de Goa em mapa de 1892

No rio Tiracol, são encontradas quase todas as espécies mencionadas. Esse é o único estuário onde se encontrava originalmente “Ceriops tagal”, agora propagada por outros estuários adjacentes. Os rios Chaporá, Mandovi, Mapusa (afluente do Mandovi), Zuari (rico em “Bruguiera gymnorrhiza” e “Aegiceras corniculatum”), Sal (pequeno estuário com margens ornadas por mangais), Talpona (poucos, mas densos bosques), Galgibag (densos manguezais favoráveis à reprodução de peixes). Como em toda área de manguezal no mundo, ocorrem espécies associadas. Destacamos a samambaia-do-brejo (“Acrostichum aureum”), que está presente em todo o mundo).

Bosque de mangue da Índia (“Ceriops tagal”)

  Os rios que cortam Damão são menores e em menor número. Trata-se de um pequeno território transformado em colônia de Portugal no século XVI. O limite norte é delimitado pelo rio Kolak (50 km). 

Rio Kolak

Pelo centro, corre o rio Damangonga (131 km), na margem direita do qual, ergueu-se o núcleo urbano chamado de Damão Grande, que conquistou também a margem esquerda com o nome de Damão Pequeno. Cidades dividas por rios são comuns em todo o mundo.

Rio Damanganga - Damão

 O limite sul do
território é marcado pelo rio Calen. Nos três cursos fluviais, entre os quais se constituiu o território de Damão, desenvolvem-se ainda expressivas áreas de mangais.

Já Diu foi instalado numa ilha ao norte da Índia. O canal que a separa do continente, abriga também um rico manguezal. Na ponta oriental da ilha, os colonizadores portugueses construíram um famoso forte.

Forte português em Diu

As populações dos três territórios cultuam o hinduísmo (em grande escala), o islamismo (em pequena escala) e o catolicismo (em média escala). Uma pequena parte da população ainda é parse, grupo que restou do culto de Zoroastro. Sabe-se que o hinduísmo considera sagrados dos rios, embora tal sacralidade não implique em cuidar da integridade deles. O médico militar Joaquim Ribeiro Simões escreve pouco antes dos territórios portugueses passarem para o domínio da União Indiana: “Estendidos pelo areal fora, alinhados em formatura, viam-se dezenas e dezenas de traseiros de hindus defecando despreocupadamente como se estivessem utilizando as suas próprias retretes. Sem pressas, em tranquilo ritual. Com as mãos esquerdas iam limpando os escuros cus e lavavam-nos sem qualquer complexo, atrapalhação ou parcimônia, que a água do (rio) Mandovi, abundante vem correndo incessantemente dos sítios montanhosos de Valpoi e Codai sobre a fronteira oriental.” (“Adeus Goa, adeus Lisboa”. Castoliva: 1986). Para islâmicos e cristãos, os rios e os mangais não mereceram atenção religiosa. Isto seria idolatria. Resta saber em que medida, rios e mangais integram a cultura das quatro religiões. Para a cultura científica em todo o mundo, os mangais estabilizam a linha de costa e previnem erosão, protegem o litoral de tempestades marítimas e de ventos, permitem a aquicultura e atuam como excelentes sumidouros de carbono, assim como abrigo de espécies animais, berçário e áreas de alimentação. No plano econômico de escala, os mangais asiáticos podem ser cultivados na forma de arboricultura para fornecer lenha e madeira. Há projetos empresariais de substituir os mangais para o cultivo de camarões.

No nível médio, o mangal pode se transformar em área de turismo. Até mesmo a concepção de que o mangal é uma área de lama negra, pútrida e fétida não deixa de ser cultural. Para os pobres que dependem dos mangais para a coleta e a pesca, eles fornecem também lenha e madeira em pequena escala para a fabricação de canoas e construção de casas. O tanino pode ser usado para fortalecer as cordas com que são tecidas as redes e na tintura de panelas de barro. Pode ser usado com fonte de medicamentos e fornecedor de mel.

Não sei se, em Goa, Damão e Diu, antigos domínios portugueses hoje integrados à Índia, existem estudos sobre a influência do mangal na cultura, como no Brasil. Num opulento livro sobre a geografia de Goa, Damão e Diu, Raquel Soeiro de Brito atualiza, no final dos anos 1990, um livro que redigiu em fins da década de 1940. O mangal só aparece numa foto e numa breve referência aos planos indianos de desenvolvimento (“Goa e as praças do norte”. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998). No Brasil, sabemos que o mangal é um ambiente ainda cercado por entidades mágicas protetoras, inspiram as artes populares, a música popular, a pintura elaborada e a literatura. Como o hinduísmo, o cristianismo, o islamismo e mazdeísmo entendem o mangal e o incorporam às suas respectivas culturas?

O que se sabe é que, tanto na Índia quanto em todo o mundo tropical, os mangais perdem terreno diante do desarraigamento, da urbanização, da poluição, de outras atividades humanas. Tudo isto não deixa de ser cultural, mas de uma cultura perversa que pertence ao passado. A nova cultura científica converge com a cultura popular e valoriza a importância dos mangais. 


Postar um comentário

0 Comentários