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Povos pioneiros do norte-noroeste fluminense

Por Arthur Soffiati

No fim do século XVIII, Manoel Martins do Couto Reis dava notícia do estado das nações indígenas que habitavam as futuras regiões norte-noroeste fluminense. Sobre os goitacás, já extintos, diz ele que as informações mais fidedignas localizam-nos nas campinas “...compreendidas entre a Lagoa Feia, de Carapebus, e Ponta de São Tomé (...), possuindo também toda a costa do mar correspondente, até a vizinhança de Macaé.” Ele fulmina os colonos com a seguinte observação: “Neste tempo era o principal, e mais interessante objeto das riquezas na América, fazer oposição aos índios, não só a fim de se lhes aquebrantar os ânimos, e forças; como de os sujeitar debaixo do jugo da escravidão. Nisto tanto se exercitaram os nossos paulistas antigos, que apesar dos maiores incômodos, se ofereciam a viajar pelos mais ásperos sertões do Brasil; aonde procederem em muitas ocasiões contra aquela miserável, e desgraçada gente, com mais barbaridade, que a dos mesmos bárbaros”. 

Num arroubo de humanismo, ele exclama: “Nada poderá haver mais sensível à vida humana, que a triste sujeição do cativeiro, e em consequência deste, mal pode um coração viver tranquilo, por mais agrados que receba de um benigno Sr., pois basta a lembrança da perdida liberdade, para serem as mortificações continuadas” (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). 

Representação hipotética do goitacá. Autor desconhecido

Em anexo a seu famoso relatório, ele mostra em que estado se encontravam os povos indígenas que habitavam o norte-noroeste fluminense. Das nações que faziam limites no passado com os goitacás, os saruçus ainda existiam, habitando as montanhas e vales, entre os rios Macaé e São João. Os coroados, povo guerreiro, assentaram-se entre a margem setentrional do rio Paraíba do Sul (a oeste da primeira cachoeira) e a Serra da Frexeira, atualmente em Cambuci, subindo a barra do rio Pomba até as fronteiras com Minas Gerais. Os puris ocupavam o território que se estendia do rio Pomba, confinando com os coroados, até o norte do rio Muriaé. Esclarece o cronista que esse povo errava dentro dos seus limites e era muito cruel. Quanto aos guanhuns, depois de se lhes impor uma diáspora, estavam vivendo entre os rios Imbé e Paraíba do Sul, ao norte da lagoa de Cima. Mostra ele que os guarulhos se confundiam com os coroados e rejeita a expressão bugre para nomear nações tão distintas. 

Representação de puris segundo Rugendas

Em seguida, com acuidade de etnógrafo, explica que os idiomas falados por esses povos diferiam muito da língua geral no Brasil, na verdade imposta pelos jesuítas. Aliás, não revela, quanto ao tratamento dado aos índios, a mínima simpatia pelos missionários desta ordem religiosa, que, segundo ele, levavam numa das mãos a cruz e na outra cadeias ocultas, confinando os nativos em reduções para se apossarem de suas terras. Fala-nos dos acampamentos simples dos puris; das aldeias com casas pequenas e efêmeras; das casas cobertas de palha dos saruçus; das casas grandes dos coroados, construídas com madeira forte e paredes muito bem barreadas, sem janela e porta somente de um lado, com teto feito de casca de madeira ou palha. Descreve práticas agrícolas e hábitos alimentares, tecnologia e crenças religiosas. Enumera as reduções construídas por missionários e deixa transparecer o processo de refração, aculturação e extermínio de tais povos, principalmente por meio de bebidas alcoólicas. Couto Reis continuará a escrever sobre os índios e mudará de opinião sobre eles com o passar dos anos.

Representação de Coroados e Coropós segundo Rugendas

Em 1815, passou pela região, em sua excursão científica, o naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied. Àquela altura, as nações indígenas estavam a ponto de perder seus derradeiros traços de identidade cultural e à beira da desagregação. Visitou ele uma missão religiosa em São Fidélis reunindo remanescentes de índios coroados e coropós. Visitou os puris em Ipuca, margem esquerda do Paraíba do Sul. Eles ainda eram arredios. Por serem nômades, Maximiliano observou com justeza, que eles "abandonam tais moradias, sem saudades, quando a região circunvizinha não mais lhes garante alimento suficiente; deslocam-se, então, para outros lugares, onde encontram maior abundância de macacos, porcos, veados, cutias e outras raças (...) Dizem que devoram, da mesma maneira (que os macacos), por vingança, carne humana; quanto, porém, a comer os próprios parentes falecidos, como derradeiro tributo de afeição, de acordo com o referido por alguns antigos escritores, não se encontra nenhum traço desse costume, pelo menos nos nossos tempos, entre os tapuias da costa oriental. Os portugueses do Paraíba afirmam, sem discrepância, que os Puris comem carne dos inimigos mortos..."

Escalada de árvores por puris em São Fidélis. Desenho de Maximiliano de Wied-Neuwied (1815)

Ele notou que os índios mais puros culturalmente já haviam adotado o cachorro como animal domesticado, para ele, mais uma evidência da superioridade dos europeus. Em São Fidélis, Freyreiss, um dos dois naturalistas que o acompanhavam "... entrou em negócio com um dos puris para a compra de um filho, oferecendo-lhe diversos artigos." As mulheres parecem ter protestado, mas a decisão coube a um ancião. Ele observou, então, a indiferença dos nativos em se desligarem dos filhos, como se desfizessem de coisas: "Essa empedernida indiferença em todas as circunstâncias, alegres ou tristes, se encontra na totalidade das tribos americanas. Alegria e tristeza não os impressionam muito; raras vezes riem, e é pouco comum falarem alto." (Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989).


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