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Dieta alimentar no norte fluminense antes dos europeus


Por Arthur Soffiati

Segundo economistas ecologistas, existem as seguintes necessidades básicas para a vida humana: ar, água, repouso, alimento, exercício físico, vestimenta, lazer e habitação. Eles não inserem o transporte porque ele pode ser dispensável quando se trabalha perto de casa. De todos, ar, água, alimento e repouso são inadiáveis. Vive-se pouco tempo sem respirar. Vive-se alguns dias sem água. Com ela, é possível viver vários dias sem alimento pastoso ou sólido. Não se pode viver sem o sono e o repouso. É possível viver sem vestimenta e sem moradia, como a pesquisa arqueológica e antropológica já demonstrou.

Para um historiador ambiental que estuda as relações entre sociedades humanas e ecossistemas não só por textos, mapas, artefatos, em arquivos e museus, mas também nos locais pesquisados, a respiração, a água e o alimento interessam. Existem lugares do planeta com mais ou menos ar. A quantidade e a qualidade da água importa. Para quem vive no deserto de Atacama e numa planície aluvial ou ainda numa ilha, o uso da água é fundamental. Do mesmo modo, a alimentação imprescindível, pois ela é obtida por sociedades simples nos ecossistemas em que vivem.

A região da Terra onde se formou o Brasil e, dentro dele, a capitania de São Tomé-Paraíba do Sul-São Vicente-Rio de Janeiro-distrito de Campos dos Goytacazes-comarca de Campos-região norte-noroeste fluminense, conta com seis ou sete biomas e um grande número de ecossistemas. Por mais áridos que sejam alguns deles, sempre foi possível aos povos nativos (que denomino de pioneiros por terem chegado primeiro que os europeus) encontrar água e alimentos. Esses grupos viviam em economias de subsistência - algumas bastante elaboradas -, que não exigiam exploração máxima dos recursos naturais, sobretudo para alimentação. 

Os atuais norte e noroeste fluminense, sul capixaba e Zona da Mata, em Minas Gerais, apresentavam, antes da chegada dos europeus, diversidade ecológica dentro de certa unidade. Encontrávamos, destro desse vasto território, rios com grande diversidade biológica, florestas, banhados, vegetação de restinga e manguezais com fartura de plantas e de animais utilizados como alimento humano. Toda ela era povoada por grupos da nação linguística macro-jê. De acordo com o ambiente, os artefatos variavam quanto ao material. Na planície, praticava-se apenas a cerâmica pela ausência de pedra. Já na parte alta, os instrumentos líticos são comuns e já polidos. 

Existe uma profusão de documentos sobre esses povos, a conferir unidade cultural sobre uma unidade natural. Essa documentação não é tão rica quanto aquela relativa aos tupis e guaranis. As línguas dos grupos macro-jê eram ásperas e difíceis de serem utilizadas com instrumento de catequese pelos missionário. O tupi era mais fluente. Daí, a catequese ser promovida com o uso do tupi. Na região em apreço, que denomino ecorregião de São Tomé, o tupi entrou de tal forma que nem na toponímia encontramos palavras de origem jê. Sequer conhecemos algum lugar com nome puri, a língua mais difundida do grupo.

Sabemos que a alimentação desses grupos também variava de acordo com o ecossistemas, mas os estudos arqueológicos estão mais interessados em enterramentos e em cultura material, como cerâmica e ferramentas de pedra. São escassos os documentos sobre as dietas alimentares desses grupos. Sabemos que a prodigalidade dos ecossistemas inibiu o desenvolvimento da agricultura, embora ela fosse conhecida. Um estudo examina um grupo humano que viveu na ilha de Santana, a maior do arquipélago de mesmo nome diante da foz do rio Macaé, no século XI da era cristã, com elasticidade na datação. No continente, os ecossistemas eram pródigos em animais, o que permitiu uma alimentação baseada na coleta, na pesca e na caça para os grupos que viveram em terra firme.

Arquipélago de Santana

O modo de vida desses povos nos leva a repensar os conceitos de paleolítico e de neolítico. Pesquisadores europeus e asiáticos universalizaram tipologias do velho mundo. Com base em exemplos europeus e asiáticos, eles consolidaram a noção segundo a qual povos que viviam exclusivamente da coleta, pesca e caça precisavam se locomover periodicamente em busca de alimento. Seu modo de vida, pois, era nômade. Esses povos desconheciam a cerâmica, e seus instrumentos eram fabricados com madeira e pedra principalmente. Eles não conheciam técnicas de polimento de pedra, mesmo porque os deslocamentos frequentes não permitiam o desenvolvimento de técnicas de polimento e de trabalho com argila. Seu modo de vida foi batizado de paleolítico (pedra antiga).

Na transição do Pleistoceno para o Holoceno, em torno de 12 mil anos antes do presente, as mudanças climáticas naturais representaram um desafio a que alguns povos paleolíticos responderam com a domesticação de plantas e animais, inventando a agricultura e o pastoreio. A produção de alimentos permitiu que esses povos se fixassem num lugar e se tornassem sedentários. Permanecendo bastante tempo num ponto, foi possível a eles inventarem a cestaria, a cerâmica, a tecelagem, a metalurgia, a roda etc, sem abandonar de todo a coleta, a pesca e a caça. Esse modo de vida foi cunhado de neolítico e está fortemente associado ao sedentarismo. A fixação no solo foi importante passo para a construção das primeiras civilizações, na Mesopotâmia e no vale do Nilo.

Esse quadro estabilizado na Europa não se aplica aos povos americanos. Do círculo polar ártico ao círculo polar antártico, alguns grupos humanos desenvolveram tecnologia paleolítica e modo de vida sedentário. Outros desenvolveram a cerâmica e o polimento de pedra não necessariamente associados à agricultura nem à vida sedentária. Outros, como os esquimós, produziram cultura de caça e de sobrevivência sofisticada e tangenciando o conceito de civilização. As três civilizações da América - inca, maia e mexicana - construíram obras magistrais sem abandonar a coleta, a pesca e a caça de todo.

O grupo que habitou a ilha de Santana no século XI vivia da coleta, da pesca e da caça. Não conhecia a cerâmica e o polimento de pedra. Ele poderia ser classificado de paleolítico pelos critérios europeus, mas era sedentário. A fartura de alimentos na ilha permitiu o sedentarismo. A base da sua alimentação eram os peixes. Esse povo pescava com processos rudimentares, usando as mãos, capturando peixes que ficavam aprisionados em locas de pedra quando a maré baixava e talvez com alguma forma bastante rudimentar de anzol feito de espinho. A diversidade de espécies indica fartura. Pesquisa efetuada por Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pineiro da Silva (Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da Ilha de Santana. “Revista de Arqueologia 2 (2)”. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, jul/dez de 1984) encontrou ossos de cação-martelo, raia-chita ou pintada, bagre-bandeira, garoupa, mero, cherne, badejo, anchova, xaréu, peixe-galo, cocoroca, sargo-de-dente, marimbá, corvina, enxada, cangulo e até baiacu. 

Baiacu

Várias espécies de peixe que faziam parte da dieta básica do povo da ilha de Santana são hoje consideradas nobres e vendidas por preços altos nas feira, mercados e restaurantes. O baiacu é desprezado por ser espécie comum e vulgar. O pescador que o fisga costuma inflar sua barriga e estourá-la. No Brasil, como informa Gabriel Soares de Sousa, era ingerido pelos caiçaras e índios após ser devidamente preparado, pois ele contém vesícula com veneno mortal. O povo de Santana recorria ainda a crustáceos como os siris, o guaiamum, o uçá, o guaiá-açu. Observe-se que o guaiamum costuma viver na borda de manguezais, ecossistema não existente na ilha, mas pode viver também longe dele. O uçá é considerado o caranguejo nobre por ser vegetariano, mas só é encontrado na vasa do mangue. Acredita-se que integrantes desse povo fazia incursões eventuais ao continente, onde existia um pujante mangue na foz do rio Macaé. Dele, obtinham também uma ostra que se desenvolve nas ramificações caulinares do mangue vermelho (Rhizophora mangle). Ao todo, as arqueólogas identificaram 33 espécies de moluscos consumidas pelo povo de Santana. A dieta incluía também os ouriços do mar.

Siri em desenho de Frei Cristóvão de Lisboa. História dos animais e árvores do Maranhão (1652)

Entre os répteis, o teiú e a tartaruga marinha eram os prediletos dos habitantes da ilha. O teiú tem uma cauda muito apreciada ainda hoje por roceiros. As tartarugas, além de fornecerem a carne, tinham suas carapaças usadas como recipientes, assim como as ostras. Aves que ainda hoje frequentam o arquipélago entravam na culinária dos ilhéus, tais como a procelária, o atobá, o alcatraz, a saracura, o trinta-réis e a juriti. Além da carne, as tartarugas e as aves forneciam ovos. Mamíferos também eram ingeridos. As pesquisas encontraram ossos de preá, paca, bugio, lontra, veado e porco-do-mato. Pode-se considerar que o preá tenha chegada à ilha quando ela se ligava ao continente como promontório, passando a viver nela depois que o nível do mar subiu e separou as partes mais altas do continente, partes essas que compõem hoje o arquipélago. A paca, como boa nadadora, também podia atravessar o mar nadando, aproveitando-se de correntes ou ainda boiando em tufos de vegetação arrancados pelas marés e pelas ondas. A presença do veado, do bugio, da lontra e do porco-do-mato, contudo, indicam contatos esporádicos com o continente.

Porco do mato em desenho de Frei Cristóvão de Lisboa. História dos animais e árvores do Maranhão (1652)

Houve, assim, na ilha de Santana, uma comunidade pré-europeia com baixa mobilidade. Essa esporádica movimentação entre ilha e continente não caracterizaria mesmo qualquer tipo de transumância. Além do mais, pela dieta do povo, conclui-se por sua riqueza proteica e pela viabilidade de colonização humana de longa duração num ambiente insular.

Com relação aos grupos pré-europeus que viviam no território da Ecorregião de São Tomé, os estudos têm se concentrado mais nos enterramentos e na cerâmica. Pero de Gois, em sua efêmera tentativa de colonizar a capitania de São Tomé, nada informou em suas cartas ao rei e a seu sócio em Portugal. O trecho costeiro entre os rios Macaé e Itapemirim conta com pouca informação acerca das dietas alimentares dos povos pioneiros. Encontrei apenas exíguas referências sobre no Roteiro dos Sete Capitães, documento do século XVII (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas) e GOMES, Marcelo Abreu. Macaé: Funemac Livros, 2012).

O escrivão que redigiu o documento em nome de dois capitães informa que um arraial já existia onde hoje é Macaé, habitado por mamelucos que viviam da pesca de bagre, nome do rio às margens do qual erguia-se a aldeia. Na lagoa Feia, que maravilhou os fidalgos, havia canoas construídas com três travessas destinadas à pesca. Num ponto, o roteiro coloca na boca do pseudo-redator: “Ficamos pasmos de ver semelhantes grandezas de peixes em terra, dentro em um dia nublado, frio e de um vento fulminoso. Agradecemos muito o presente, pois era estimável em tal lugar. Mandamos preparar os peixes, pois eram de cobiçar em tal lugar por estar fresco, para nos refazermos de barriga, pois já ia havendo alguma necessidade”. Mais adiante: “Enfim chegamos ao seu arraial. Era bem grosseiro. Eram umas choupanas grandes em cima de uns montinhos: nesta mesma campina achamos muitas caças mortas que diziam serem mortas de manhã, as quais eram veados e capivaras e muitas aves grandes e pequenas, uma fertilidade.”

Veado em desenho de Frei Cristóvão de Lisboa. História dos animais e árvores do Maranhão (1652)

Os iniciadores da colonização contínua da região em moldes europeus estavam então numa rica planície saturada de água. Nela, habitavam muitas espécies de peixes, répteis, aves e mamíferos que constituíam a alimentação de seus habitantes. Tamanha fartura inibia o desenvolvimento da agricultura pelos pioneiros, embora eles conhecesse a mandioca e seu cultivo. Eram povos coletores, pescadores e caçadores que já fabricavam a cerâmica e, no zona serrana, poliam a pedra.


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