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A misteriosa ilha de Santa Clara


Por Arthur Soffiati

Ao chegarem à América, em 1492, os europeus dedicaram-se inicialmente a reconhecer o litoral, batizando os acidentes geográficos como forma de se orientar e de orientar outros navegantes. Havia informações que podiam ser divulgadas e outras que eram secretas. Um ponto de referência importante na América do Sul era o Cabo de São Tomé, já registrado na Cosmografia Universal, de Martin Waldsmuller, datada de 1507. É o primeiro mapa em que figura o nome América.

Entre as baías do Espírito Santo (Vitória) e do Rio de Janeiro (Guanabara), na costa hoje correspondente aos municípios de Marataízes, São Francisco de Itabapoana, Campos, Quissamã, Carapebus e Macaé, os acidentes que mais se destacavam eram o rio Managé, hoje Itabapoana, São Salvador, que nomeava uma enseada e uma ponta, o cabo de São Tomé, e Mag-he, que indicava o rio Macaé (que aparece também como rio dos Bagres), e o arquipélago de Santana. Eram pontos de referência importantes para os navegadores. Na costa que se estende da foz do Itapemirim (batizado no século XVI de rio Santa Catarina) à foz do Macaé, as naus podiam navegar sem susto desde que afastadas da costa. Não há ilhas nesse trecho costeiro que representem perigo para o navegador. O perigo era aproximar-se da costa, pois ela apresentava muitos baixios que podiam encalhar a embarcação. Passado esse trecho e alcançada a ilha de Santana, os navegantes encontravam água doce sem a necessidade de ir ao continente e correr o risco de serem mortos ou capturados pelos “bárbaros” índios goitacá.

Mas, no trecho costeiro mencionado, os cartógrafos registraram uma misteriosa ilha a que deram o nome de Santa Clara. Ela foi assinalada na altura do rio Managé (Itabapoana). Nem todas as cartas náuticas fazem esse registro. É certo que havia muita cópia na época. Um cartógrafo copiava do outro sem nenhum problema de direitos autorais, algo inexistente naquele tempo.

Na carta do holandês Johannes van Doetchum, o Velho, datada de 1585, a ilha figura soberana, como se pode ver abaixo. Ao sul dela, duas fileiras de pontinhos indicam baixios, ou seja, acúmulo de sedimentos no fundo do mar que podem atingir a superfície e encalhar uma nau. Acima dela e diante da baía do Espírito Santo, esses pontinhos também aparecem. Na costa, defronte a ilha de Santa Clara, aparece o rio Managé.

Johannes van Doetchum - 1585

Numa carta de Linschoten, datada de 1596, a ilha aparece novamente. Jan Huygen van Linschoten era também um holandês que viveu quase totalmente no século XVI. Ele foi mais que cartógrafo. Suas viagens pelas terras portuguesas na Ásia se tornaram famosas. Viveu em Goa, onde serviu ao bispo da sede colonial portuguesa no oriente. Ele serviu a dois senhores: Portugal e Holanda. A carta parece cópia. Acima, o temido atol de Abrolhos, a baía do Espírito Santo, o cabo de São Tomé e, entre ambos, a ilha de Santa Clara com os mesmos pontinhos que saem dela na parte sul. O registo é feito em letras bastante grandes.

Jan Huygen van Linschoten - 1596

No último ano do século XVI, Levinus Hulsius, de origem belga, mas que se transferiu para a Holanda, também elaborou uma carta geográfica. Ele foi fabricante de instrumentos musicais e editor. O mapa atribuído a ele certamente se trata de cópia de anteriores. A ilha de Santa Clara aparece acima do cabo de São Tomé e quase no interior da baía do Espírito Santo.

Levinus Hulsius - 1599

Afinal, que ilha é essa? Ela terá existido e sido engolida pela natureza do século XVI para cá? Mapas do início do século XX não a registram. Terá sido um erro do cartógrafo, copiado por vários outros? Estará fora de lugar, já que a precisão era menor no início da colonização portuguesa? Será marca da cartografia holandesa?

Tentemos uma interpretação. Sabemos por documentos escritos que existia um baixio denominado Baixo dos Pargos. Ele figura em cartas náuticas e em documentos escritos. Alberto Frederico de Morais Lamego escreveu sobre ele (“Mentiras históricas”. Rio de Janeiro: Record, s/d). Dediquei a esse parcel um capítulo inteiro no livro “O norte do Rio de Janeiro no século XVI à luz da história mundial e da eco-história” (Rio de Janeiro: Autografia, 2019, p. 86). A primeira hipótese é que a ilha de Santa Clara seja o mesmo Baixo dos Pargos, assinalado no Diário de bordo de Pero Lopes de Sousa (São Paulo: Parma, 1979) e em vários mapas elaborados entre os séculos XVI e XVIII. Esse mesmo ponto foi tomado como divisa entre as capitanias de São Tomé e do Espírito Santo. Não sendo localizado com facilidade, os donatários de ambas firmaram um acordo referendado pelo rei de Portugal, definindo a divisa no rio Santa Catarina (atual Itapemirim). Não descartamos esta primeira hipótese, mas observamos que, já no século XVI, ele não era tão claramente definido no terreno. Suponho que o Baixo dos Pargos seja um remanescente da erosão das barreiras vermelhas que se encontram nesse trecho da costa.

Costa entre os rios Itapemirim e Itabapoana

Outra hipótese é que a ilha de Santa Clara corresponda a duas pedras dentro do mar em frente à foz do rio Itapemirim. É difícil crer que sejam elas a tão realçada ilha. Os pilotos costumavam de afastar da costa desde o atol de Abrolhos para evitar encalhes, retornando a ela pouco abaixo da foz do Itapemirim ou do Managé. A hipótese mais provável mas não a definitiva é que a ilha de Santa Clara corresponda à pequenina ilha das Andorinhas, na costa capixaba. Trata-se de uma ilha resultante da erosão do litoral com a elevação do nível do mar e seu avanço (transgressão) sobre o continente. Ela existe ainda hoje. É formada por barreira e tem uma pequena área verde. Seu destino é desaparecer erodida pelo mar, já que nenhuma formação pedregosa integra sua composição.

Ilha das Andorinhas

Mas pode também não ser nenhuma das hipóteses levantadas.


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