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No tempo do onça


Por Arthur Soffiati

Em passado não muito remoto, usava-se a expressão “no tempo do onça” para significar que algo era antigo. Presume-se que a forma inicial era “no tempo da onça”. Sua origem talvez seja a região Sudeste do Brasil, onde as onças quase desapareceram não apenas pela destruição de sua casa florestal como pela perseguição implacável que o animal ainda sofre. 

Em 1785, o capitão de infantaria e cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis escrevia que “A irregularidade, e disposição, que notamos neste terreno, composto de tantos montes, vales, muitos brejais, imensas águas, e extensas campinas, concorreu muito em outro tempo a fazê-lo fertilíssimo de animais silvestres de muitas espécies das do Brasil; porém, os sucessivos divertimentos dos homens, aplicados ao exercício das caçadas inventadas e praticadas de vários modos e também os indispensáveis alaridos do povo, os estrondos dos tiros de espingarda, as derrubadas de madeiras, que formam na concavidade das montanhas formidáveis ecos, e a frequência de fogos, vieram a destruí-los em muita parte, e os que restavam espantados se concentraram às entranhas dos Sertões mais distantes, onde procriam; porém ainda assim em certos tempos com as conjunções da Lua aparecem muitos nos arredores dos lugares povoados.” (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goytacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011.

A observação data do século XVIII, mas ainda é muito atual. Ainda hoje, a fauna silvestre é perseguida e abatida, não tanto por necessidade de alimento, mas pelo prazer da caça. Os poucos exemplares restantes fogem da presença humana e se reproduzem com dificuldade. Lagoas e florestas, seus habitats naturais, em grande medida foram drenadas ou derrubadas. Não apenas os humanos retiram os animais de suas casas como retiram as casas deles. Ainda hoje, é comum certas espécies de cobra, o jacaré-de-papo-amarelo, o tamanduá-de-colete, o gambá, a capivara  e mesmo o lobo-guará aparecerem na periferia das cidades do norte fluminense ou serem mortos por atropelamento. A cidade invade seus ambientes e nela os animais entram à procura de alimento.

Quem se depara surpreso e assustado com um gambá em seu quintal não pode imaginar quão rica era a biodiversidade do Norte/Noroeste fluminense. Na margem direita do rio Paraíba do Sul, predominavam as espécies aquáticas, considerando-se que havia uma infinidade de lagoas de planície aluvial e de restinga. Na margem esquerda, também havia lagoas, mas predominava uma vasta floresta atlântica estacional semidecidual. Por se alastrar em terreno ondulado baixo, ela foi dizimada, restando apenas alguns fragmentos. Na zona serrana alta, ainda existem florestas e uma considerável fauna nativa cuja diversidade e número de exemplares não se igualam àquelas registradas por Couto Reis, no século XVII, pelos Sete Capitães, no século XVII (GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas; LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas); GOMES, Marcelo Abreu. Roteiro dos Sete Capitães. Macaé: Funemac Livros, 2012.), e a que existia antes da conquista e colonização europeias.

Ficaram alguns registros que nos surpreendem. No livro “Campos dos Goitacazes em 1881” (Rio de Janeiro, Laemmert, 1886) José Alexandre Teixeira de Mello faz um registro encantador: “Uma vez, descia eu de madrugada, em canoa, pelo Muriaé, com minha família. Ao passarmos pela fazenda da viscondessa de Muriaé, eu, que adormecera à toada monótona dos remos na canoa, desperto de repente e assisto a um espetáculo original e único de que fora testemunha em minha vida: na baixada cortada pelo rio, em uma e outra margem, creio que todas as aves canoras da região se haviam congregado para comemorarem talvez alguma data gloriosa ou triste entre elas, por um concerto vocal matutino, a que a tecnologia estrangeira denomina “matinée musicale”, era admirável a harmonia daquele conjunto de mil vozes, regidas por batuta invisível, tão maravilhosamente se combinavam os cantos em uma “opera” fantástica que nenhum Mayerbeer, nenhum Carlos Gomes, nenhum Wagner comporá jamais. Como que todas as aves canoras da região estavam ali representadas no que tinham de mais melodioso. Foi um espetáculo sublime que na ocasião nos pareceu sobrenatural, desvanecendo-se rápido como um sonho, mas deixou-me a mais grata e duradoura impressão.”

Progressivamente a biodiversidade regional se empobreceu. No jornal “O Monitor Campista” de 16/02/1883, lê-se a seguinte notícia: “Onça canguçu - Em Monte Verde, na fazenda de S. Lourenço, propriedade do Sr. Antônio Alvares de Almeida Pereira, foi apanhada em uma arataca uma onça da espécie Canguçu, igual à que foi apanhada na mesma fazenda e que foi exposta nesta cidade há pouco tempo. A onça foi vendida por 1.000$ a uma pessoa que vem aqui expô-la, achando-se já em Vila Nova.” Os animais silvestres vão se tornando alvo da imprensa à medida em que se tornam mais raros. No final do século XIX, o aparecimento de exemplares da fauna nativa começam a figurar nas páginas dos jornais. 

A canguçu é a mesma onça-pintada ou jaguaretê (Panthera onca), o mais imponente das poucas espécies de felinos que ainda habitam o Brasil. Ela é um animal respeitadíssimo pelos povos pioneiros do Brasil no passado.

Macho da onça canguçu

Outra notícia de jornal mostra como os animais silvestres eram e ainda são tratados. Ela foi publicada com o título de “Até parece ‘Blague’!” na “Folha do Commercio” (Campos: 10/02/1934). “Apareceu uma onça nas Oficinas Carangola. Não fosse o fato presenciado por muitas pessoas e ter uma delas, o sr. Agenor Torres, vindo narrá-lo à nossa redação, tomaríamos por uma ‘blague’ o que ontem se verificou em Guarulhos nas Oficinas Carangola. Pela manhã, à hora em que alguns aviões se exibiam sobre a cidade, trabalhadores que se achavam sentados em um capinzal ao fundo daquelas oficinas, viram surgir, de um mato existente à margem de uma lagoa próxima, um grande animal. A princípio tomaram-no por um cão, mas depois verificaram que não o era e, ao grito de um - ‘é uma onça’ - puseram-se todos a correr. O felino, entretanto, continuou calmamente a caminhar. Aliviados do enorme susto que sofreram, os homens, munidos de pau, resolveram enfrentá-lo. Então, livra daqui, livra dacolá, após uma grande luta conseguiram estendê-lo morto. Na luta, Crisolino, conhecido ‘pleyer’ do Campos A. A., teve uma mão bastante ferida, e outro cidadão recebeu arranhões por todo um braço.”

Ao redor das lagoas de Guarus, havia densas florestas no passado. Por uma foto do famoso fotógrafo Guilherme Bolckau, tirada em 1979, aparece a floresta com um caminho ao meio para que se estendessem os trilhos da Estrada de Ferro Carangola, que cortava todo o Noroeste fluminense. Foi na estação dessa ferrovia que apareceu a onça canguçu. Hoje, apenas uma amostra desse floresta se encontra no entorno da lagoa das Pedras. Nela, não há mais nenhuma onça. 

Abertura de clareira na mata, em Guarus, para assentamento dos trilhos da Estrada de Ferro Carangola


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