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Chuvas de 2013: Vila Menezes


Por Arthur Soffiati


Até o início do século XIX, o rio Paraíba do Sul tinha margens livres, sem diques para conter as cheias de verão. Transbordamentos começavam, na margem direita, pela entrada de água em pontos mais baixos. Esses transbordamentos eram mais comuns na margem direita do rio, que é mais baixa em relação ao nível médio das águas. Elas corriam livres pela superfície terrestre, acumulando-se em rasas depressões e formando o que conhecemos pelo nome de lagoa. As águas excedentes também transbordavam nessas lagoas e continuavam descendo. As saídas para o mar eram exíguas na grande planície. A principal era o próprio rio Paraíba do Sul. Além dele, havia o rio Iguaçu e Barra do Furado. Lembremos também que havia comunicação das águas do rio com a baixada da margem direita o ano inteiro pelo lençol freático.


A margem esquerda é ligeiramente mais alta que o nível médio do rio. Quando dos transbordamentos, as águas subiam, caíam em lagoas e o excedente voltava ao rio. Os diques para contenção de cheias começaram a ser construídos no início do século XIX. O primeiro foi erguido com pedras em 1833 para proteger a zona rural. A cidade continuou desprotegida. Havendo transbordamento, a população recorria a sacos de areia empilhados. O núcleo urbano foi vitimado por muitas cheias.


A partir de 1940, as obras de contenção de enchentes ficaram a cargo do Departamento Nacional de Obras e Saneamento. Por conta da vulnerabilidade, a margem direita mereceu mais atenção. Um grande dique foi erguido entre Itereré, onde o rio deixa a zona serrana, até São João da Barra, nas proximidades da foz. Os materiais utilizados na construção desse dique variavam. A parte inicial dele continuou sendo a pedra. O dique do século XIX foi mantido e reforçado. Na cidade, foi construído um dique de alvenaria, tanto na margem direita quando esquerda. Entre Campos dos Goytacazes e São João da Barra, aproveitou-se uma elevação de areia erguida para a ferrovia que alcançava Atafona.


O DNOS também abriu oito canais primários na margem direita do rio, aproveitando-se de drenos naturais por onde as águas de transbordamento no passado corriam para a baixada. Dentre os oito, apenas o canal Campos-Macaé já existia. Ele foi aberto no século XIX para promover a navegação entre as duas cidades. De montante para jusante, os canais abertos são os seguintes: Itereré, Cacumanga, Campos-Macaé, Coqueiros, Cambaíba, Saquarema, São Bento e Quitingute. Deles ou para eles, partem ou convergem canais secundários, terciários etc. Junto ao Paraíba do Sul, a água aduzida para esses canais é regulada por comportas. A montagem desse sistema pretendia regular a dinâmica hídrica do baixo Paraíba do Sul, controlando enchentes e estiagens.


Mas tudo muda. A grande enchente de 1966 colocou a prova o sistema montado pelo DNOS. O órgão federal contratou os serviços da Engenharia Gallioli para propor obras complementares. Nenhuma delas foi executada. A destruição dos ecossistemas nativos continuou a se processar por uma economia de mercado bastante rústica e imediatista. Com a extinção do DNOS em 1990, os canais foram abandonados e entupidos, as comportas enferrujaram e os diques se deterioram. Incialmente, a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA) assumiu as funções do DNOS, mas não com a mesma eficiência. Com a criação do Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea), a manutenção e as melhorias no sistema passou a este órgão. Criou-se a Região Hidrográfica IX, correspondente ao baixo Paraíba do Sul.  


O funcionamento do sistema criado pela Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, instituindo a Política Nacional dos Recursos Hídricos, prevê um comitê representativo para cada Região Hidrográfica com representantes do governo, da sociedade civil e dos beneficiários diretos das águas e uma agência de bacias. O comitê delibera e a agência executa. Mas nem tudo é tão simples assim. Dentro dos comitês, há tensões e entre eles e as agências nem sempre as relações são harmônicas, como se existisse harmonia nos ambientes natural e social.


A cidade de Campos se expandiu de forma desordenada, como é comum acontecer em países periféricos do capitalismo. Podemos estabelecer atualmente os canais de Cacumanga e de Cambaíba como limites atuais do ambiente urbano por enquanto. Hoje, a grande Campos abarca Guarus, Travessão, Goytacazes e Ururaí. Partindo da Penha, a cidade de Campos ocupou a margem direita do canal de Cambaíba entre a Br-356 e a RJ-216 (Campos-Farol). Nas proximidades do rio Paraíba do Sul, onde hoje corre o canal de Cambaíba, havia uma grande lagoa com o nome de Goiabal. Ela foi englobada por uma vasta fazenda. O DNOS drenou essa lagoa para o canal de Cambaíba por outro canal batizado com o nome da lagoa drenada. A fazenda não existe mais. A cidade tomou conta de suas terras. Construíram-se ali o CEPOP, o Novo Jóquei, uma unidade do programa habitacional Morar Feliz e a Vila Menezes.  

As enchentes costumam ocorrer com a precipitação de chuvas no meio urbano e rural quando as águas pluviais são mais volumosas que a capacidade do ambiente de absorvê-las, seja por infiltração no solo, seja por escoamento superficial em direção a áreas baixas, como rios e lagoas. São os famosos alagamentos da cidade de Campos. Podem ocorrer por vazão extraordinária de um rio, que coleta chuvas precipitadas em sua bacia. Para que haja enchente causada pelo Paraíba do Sul é necessário que a cota do rio alcance 10,40 m, a cota de transbordo. Pode também haver refluxo das águas fluviais pelos bueiros quando o rio atinge o nível das margens. Pode acontecer uma fissura no dique que permita a passagem da água acima do nível, como aconteceu em 2007. Na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, em 2010, pescadores da margem esquerda do rio Paraíba do Sul abriram as comportas do canal do Vigário, permitindo que as águas de cheia causassem enchente no Parque Prazeres.


Em janeiro de 2013, o nível do Paraíba do Sul já havia ultrapassado suas margens naturais sem risco de transbordamento ou mesmo de rompimento de dique. Para irrigar a planície, castigada por longa estiagem, o Inea abriu as comportas de uma das tomadas d'água do canal de Cambaíba, cumprindo decisão do Comitê da RH-IX. As águas ganharam as duas ramificações do canal. A que cruza área urbana penetrou no canal Goiabal e num pequeno canal. Ambos foram abertos para drenar a lagoa Goiabal, que ocupava toda a área baixa da fazenda Goiabal. Como o canal Goiabal tem mais largura e profundidade, além de há haver urbanização densa em suas margens, a inversão de fluxo não causou enchente. Já no segundo canal, que se abre e se fecha, partindo de um núcleo do Morar Feliz, para drenar restos da Lagoa Goiabal, a inversão de fluxo alagou a Vila Menezes, bairro de Campos ligado à Penha.

Comportas do canal de Cambaíba abertas. Enferrujadas, não puderam ser fechadas. Atrás delas, corre o rio Paraíba do Sul. Foto do autor


A enchente ocorreu pelas seguintes razões: a) o Inea abriu as comportas sem conhecimento das transformações que ocorreram ao longo do canal de Cambaíba; não havia conhecimento das condições de manejo das comportas; o canal por onde a água entrou e produziu enchente na Vila Menezes é estreito e raso, além de conter muita vegetação flutuante alimentada por grande aporte de esgoto; ser estrangulado por manilhas sob vias de circulação de veículos e estar entupido por falta de manutenção. Observe-se também que a Vila Menezes cresceu às margens e mesmo no leito da lagoa Goiabal.

Tentativa de barra o canal de Cambaíba para que as águas do Paraíba do Sul não alagassem a Vila Menezes. Foto do autor


É necessário estudar mais a situação atual da rede de canais. Diques e comportas dão uma falsa segurança: as pessoas acreditam que eles sempre conterão as cheias e começam a promover, com a omissão ou a conivência do poder público, expansão urbana desordenada, atingindo áreas de risco. A Vila Menezes não tem água encanada, rede de esgoto e galerias de águas pluviais. Lá, houve enchente, não alagamento. Animais refugiaram-se nas casas fugindo da enchente. Há risco de doença. Assim, houve um caso pouco comum de enchente que vem de baixo. E elas também afetam a população.  Sobretudo a mais pobre.

Uma rua da Vila Menezes depois do transbordamento. Foto do autor


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