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As chuvas de 2013 (III) – Valão D’Antas


Por Arthur Soffiati


Subindo o rio Paraíba do Sul com o objetivo de reconhecer o terreno, cartografá-lo e descrevê-lo, o capitão de infantaria Manoel Martins do Couto Reis chegou às proximidades da foz do rio Pomba, mas não pôde registrá-la em seu famoso mapa. Novo, mas já respeitado cartógrafo, ele foi nomeado pelo vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Souza para levantar uma planta do Distrito de Campos dos Goytacazes. No período colonial, um distrito correspondia a uma comarca no Brasil imperial e a uma região durante a república. O distrito de Campos dos Goytacazes tinha, então, a área correspondente à região norte fluminense, que acabou sendo dividida, nos anos de 1970, em regiões norte e noroeste fluminense. Estamos longe de imaginar como foi o Distrito de Campos dos Goytacazes entre 1783-85, tempo em que Couto Reis o cartografou e redigiu um primoroso relatório sobre ele. A planície era um mundo de água, com incontáveis lagoas. Os tabuleiros e a zona serrana eram cobertos por densas florestas que já estavam sendo derrubadas, pelo menos nos tabuleiros. As partes mais altas da serra não foram alcançadas pelo militar. Elas eram praticamente inacessíveis. Além disso, havia o temor de “índios bravos”.


Nessa longa excursão, Couto Reis rigistrou o rio Muriaé, que ele também subiu até a altura da lagoa da Onça. Na margem direita do Paraíba do Sul, ele anotou os rios Preto, do Colégio e do Gentio (Dois Rios). Não há qualquer sinal do ribeirão Pedra d’Água. Adiante do rio do Colégio, já aparece a aldeia de São Fidélis como redução indígena fundada por padres para promover a catequese de coroados e puris.


Na margem esquerda, antes de São Fidélis, ele assinalou dois riachos sem nome. Adiante de São Fidélis, aparecem mais quatro riachos. O primeiro deles, no sentido de quem sobe o rio, foi registrado como córrego Caetá. Nenhum nome acompanha os outros três. Um deles poderia ser o valão D’Antas, que deve ter recebido este nome por antas nele beberem água, assim como existem os valões da Onça, dos Porcos (do mato) e dos Veados. Embora já existissem proprietários nas imediações da foz do Pomba, as margens do Paraíba eram cobertas por espessas matas, como notaram viajantes europeus que as conheceram no século XIX.

Rios registrados por Couto Reis: 1, 2, 3- sem nome; 4- córrego Caetá; 
5- rio Dois Rios (Gentio); 6 e 7- sem nome; 8- do Colégio; 9- Preto; 10- Muriaé

Essas matas, sem dúvida, contribuíam para o equilíbrio hídrico dos rios. Nem estiagens severas no outono-inverno nem cheias devastadoras na primavera-verão. Dentre esses rios menores que o Pomba, o Dois Rios e o Muriaé, está o valão D’Antas. Ele nasce na serra do Monteverde e recebe pequenos cursos como alfuentes. Sendo uma pequena bacia serrana, existem desníveis em seu curso que produzem quedas d´água.


O primeiro mapa dos mais conhecidos em que figura o valão D’Antas já nomeado é a “Carta Cartográfica e Administrativa da Província de Rio de Janeiro e do Município Neutro”, levantada pelo Visconde de Villiers de L’Ile Adam em 1850, abaixo estampada.

Carta Cartográfica e Administrativa da Província de Rio de Janeiro e do Município Neutro levantada pelo Visconde de Villiers de L’Ile Adam em 1850. Legenda: 1- rio Pomba, 2- valão da Anta, 3- sem nome; 4- rio Dois Rios, 5- sem nome, 6- rio do Colégio, 7- sem nome (talvez valão Pedra d’Água, 8- rio Preto, 9- sem nome (rio que não poderia existir), 10- rio Muriaé


A localidade de Cambuci formou-se em sua foz, no Paraíba do Sul. Suas terras foram desbravadas por colonos em torno de 1810 em sesmaria doada à família Almeida Pereira. O Curato do Bom Jesus do Monte Verde, primeiro passo hierárquico na formação de uma cidade, foi elevado a Freguesia em 1861, vinculada a São José de Leonissa da Aldeia da Pedra (hoje Itaocara), ambas ligadas ao município de São Fidélis. No ano seguinte, ganhou o estatuto de vila. Finalmente em, em 1891, tornou-se município com o nome de Monte Verde. Em 1895, a sede do município foi transferida para Cambuci.


Do início do processo de colonização e quase durante todo o século XIX, a fundação de Cambuci implicou em escravidão, agropecuária, latifúndio e desmatamento, como em quase todo o Brasil. Os rios sofreram profundas mudanças, com quebra do equilíbrio hídrico, erosão, turbidez, assoreamento, canalização e invasão de suas margens. As estiagens e cheias tornaram-se severas. Numa das quedas d’água da bacia do valão D’Antas, a municipalidade instalou um parque aquático que, por mais de uma vez, foi destruído por cabeças d’água. Com ou sem enchentes do rio Paraíba do Sul, a bacia do valão está sujeita a oscilações extremas e arrasadoras porque os rios que a formam são pequenos, estreitos, rasos e desprotegidos. A ação humana se incumbe de torna-las mais intensas.

Morros desmatados com marcas de erosão (direita) e fragmentos de mata 
secundária (esquerda). Foto do autor

Uma das muitas enchentes ocorreu em 2013. Como de costume, as águas desceram a serra do Monteverde de forma impetuosa, alcançando a várzea do Paraíba do Sul em sua margem esquerda, transbordando e atingindo a cidade. A enchente espraiou-se pelas áreas de expansão em suas margens, já ocupadas irregularmente por construções, e provocou desbarrancamento. Canos de lançamento de esgoto ficaram expostos. 

Desbarrancamento na margem direita do valão D’Antas, onde existem construções
 em áreas de risco. Foto do autor
Canos de lançamento de esgoto nas margens do valão. Foto do autor

Como as enchentes com transbordamentos são frequentes na bacia do valão D’Antas, os próprios moradores constroem muros de concreto com a função de diques, de modo a proteger suas casas e quintais. No curso final do valão, a prefeitura ergueu dois diques nas margens. Mas a fúria das águas não foi domada por eles.

Dique de concreto construído por iniciativa particular a fim de proteger propriedade. 
Foto do autor
Diques no curso final do valão construídos pela prefeitura de Cambuci,
 vendo-se quiosques no lado esquerdo de quem olha. Foto do autor

Foz do valão D’Antas no rio Paraíba do Sul. Foto do autor

Passadas as chuvas e a enchente, o prefeito solicitou autorização ao Inea para canalização do valão num trecho em que seu curso apresenta um grande meandro. Trata-se da velha crença de que um rio sinuoso dificulta o escoamento da água. As observações têm mudado esse tipo de conclusão. As obras de canalização e a drenagem de rios mostraram que o escoamento rápido das águas de chuva, objetivando o aproveitamento máximo do solo, provoca ressecamento. Ao mesmo tempo, por ocasião de chuvas intensas, o escoamento assume o caráter de enxurrada.

Meandro a ser removido. Foto do autor

A convite de um proprietário que perderia terras com a canalização do valão, estive em Cambuci logo depois da enchente, que foi rápida e destruidora. A oportunidade me permitiu conhecer um pouco da realidade do ambiente, em geral, e do córrego, em particular. Embora o proprietário esperasse de mim algum parecer contra a retilinização, fiz apontamentos para um artigo que só agora, oito anos depois das chuvas, consigo redigir.


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