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Rios de Portugal – 2

Por Arthur Soffiati


O rio Mondego pareceu-me muito familiar. Embora com de 260 quilômetros de extensão, ele me lembrou o Paraíba do Sul, que é cerca de quatro vezes mais comprido. Assim como o Paraíba do Sul, seu curso pode ser dividido em três grandes estirões. Nascendo a 1525 metros de altitude, ele corre inteiramente dentro de território português. Melhor dizendo: a organização do Estado de Portugal englobou totalmente a bacia do Mondego. Da nascente a Penacova, ele flui em planalto cristalino. De Penacova a Coimbra, corre num vale apertado e sinuoso. De Coimbra à foz, por 40 quilômetros, o rio atravessa terrenos aluviais numa declividade de 40 metros. Desemboca no mar por uma só foz, depois de se dividir em dois braços, formando a ilha de Murraceira.

Rio Mondego em Penacova

Em sua grande bacia, a precipitação pluviométrica é intensa, alcançando a média anual de 1.233 mm, sendo sua vazão média anual de 108,3 m³/s. Na planície aluvial, as extensas e férteis áreas úmidas são propícias ao cultivo do arroz, cuja produção é uma das maiores da Europa. Em vez do gado e da cana, o arroz seria mais apropriado para a planície aluvial do Paraíba do Sul. Inclusive, há estudos a respeito. Pelo menos, não seria necessária a excessiva drenagem que ela sofreu. As cheias no rio Mondego são registradas desde o século XIV. O registro das maiores está em Coimbra, nos anos de 1331, 1788, 1821, 1842, 1852, 1860, 1872, 1900, 1915, 1962, 1969 e 1979. Em dezembro de 2019, ocorreu mais uma, com o rompimento de dois diques em Montemor-o-Velho. Costuma ser curto o tempo entre as grandes precipitações e as enchentes. A recorrência das cheias era de 50 anos. Agora, é de 20 anos. Por que? Pensemos nas mudanças climáticas.


Era possível navegar da foz a Coimbra no passado. Há notícias dessa navegação pelos fenícios e pelos romanos. Grandes embarcações alcançavam a transição da planície com o planalto. As menores conseguiam chegar a Penacova e permitiam movimentar uma economia de grande e pequeno porte. A pratica secular da agropecuária nas margens dos rios da bacia implicou na remoção das matas, na erosão e no assoreamento. No século XVIII, o assoreamento era claramente percebido. O cálculo é que o leito do rio ficou seis metros mais alto nos últimos 600 anos. Já no século XVIII foi concebido um plano de canalização do Mondego a jusante de Coimbra. Abriu-se um novo leito entre 1781 e 1807. Pensou-se o mesmo para o Paraíba do Sul, para o qual concebeu-se um rio paralelo, com o desvio do Muriaé, seu último afluente, até o mar. O projeto não foi executado. 

Figueira da Foz, no rio Mondego

Tanto lá quanto cá, o resultado das intervenções foi o assoreamento. Nos anos de 1960, formulou-se o Plano Geral de Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego, implementado nas décadas de 1970 e 1980. Hoje, o rio corre em canal artificial de Coimbra à foz. Foram construídos diques na extensão de 7,7 quilômetros. Foram dragados 16 km³. As barragens de Aguieira, Raiva, Fronhas e do Caldeirão regularizaram as águas do rio e as escravizaram para a geração de energia elétrica. Procura-se reservar águas de chuva por meio de açudes, dos quais o mais importante é o de Coimbra. 


A bacia foi colocada a serviço da agricultura, da pecuária, da indústria, da geração de energia, da urbanização e do abastecimento público de água. A bacia do Mondego é uma das mais exploradas de Portugal. A canalização do rio gerou o que popularmente se chama no Brasil de rio morto, ou seja, um canal ativo e um trecho abandonado. Na foz, foram construídos guias-correntes, o que desalinhou a costa, com engordamento da praia do lado direito e emagrecimento dela do lado esquerdo. Lembrei de Barra do Furado. Aproveitando parte do braço morto, foi construído uma grande marina para favorecer a pesca, a extração de sal e o turismo. Figueira da Foz, cidade erguida no estuário, tornou-se um dos mais movimentados entrepostos de Portugal.


Apesar de todas as intervenções humanas no rio Mondego e sua bacia, o trecho serrano dele ainda apresenta boa qualidade da água. O excessivo barramento, contudo, empobreceu a ictiofauna. Já o estirão sedimentar apresenta comprometimento da qualidade hídrica. Esse trecho já está salinizado. Novamente, senti-me em casa. Mesmo assim, no baixo Mondego, os remanescentes de matas de choupos, ulmeiros e salgueiros justificaram a criação da Mata Nacional do Choupal, nas imediações de Coimbra, onde se encontra a maior colônia de nidificação da ave milharfe-preto em toda a Europa. Apesar da profunda desfiguração da foz, a presença de significativa diversidade de aves, que ali se reproduzem e se alimentam, justificaram a criação de um Sítio Ramsar. UENF, UFF e a antiga FEEMA esforçaram-se em vão para a criação de um Sítio Ramsar no baixo Paraíba do Sul.


Enfim, examinei o rio na altura de Coimbra e notei que ele está poluído por matéria orgânica e resíduos sólidos. O rio continua belo para os humanistas estritos porque foi cantado em prosa e verso por Sá de Miranda, Camões, António Nobre, Eugénio de Castro e Miguel Torga. O fado de Coimbra também o louva. Esses cantos referem-se ao passado e, mesmo assim, talvez idealizem o rio. Os cantos atuais seriam repletos de dissonâncias.

Enchente no baixo rio Mondego

Viajando de ônibus de Porto a Fátima, cruzei um valão. Meu ímpeto foi perguntar à minha vizinha de assento o nome dele. Com cara de poucos amigos, ela já havia conversado em espanhol e inglês fluentes com duas pessoas no seu estupendo celular. Logo em seguida, falou em português do Brasil com outro interlocutor por via eletrônica. Parecia comissária de bordo e certamente não saberia me fornecer a informação que eu desejava.


Fiz o registro mental daquele curso d’água e pesquisei ao chegar a Fátima. Encontrei o pequenino rio Lis, abaixo do rio Mondego, que bem poderia ser a vala que cruzei na rodovia. Ele nasce a 400 metros de altitude e corre 40 quilômetros até desembocar no mar, abaixo da foz do Mondego. Sua nascente se situa no maciço calcário Estremenho, o segundo maior reservatório de água do país. Existem, no local, várias nascentes. A variação sazonal na nascente do Lis é acentuada, em meio a uma rica flora. 

Rio Lis na altura de sua nascente

O médio Lis corre numa planície aluvial conhecida como Campos do Lis. Em passado longínquo, sua foz situava-se a 3 quilômetros ao norte da atual, próxima à praia do Pedrogão, como mostra uma antiga pintura rupestre no interior de uma caverna. Naturalmente, ela se deslocou para o sul pela acumulação de sedimentos marinhos e fluviais.  


Nenhuma novidade em constatar que o Lis apresentou maiores dimensões no passado. Ele era navegável em toda sua extensão. Durante a idade média, ele gozou de grande importância por permitir o acesso de embarcações aos pinhais de Leiria, que forneciam madeira para a construção das naus com as quais os portugueses partiram para a conquista de terras em outros continentes através dos oceanos Atlântico e Índico. Ainda no século XIX, importantes estaleiros estavam instalados nas margens do pequenino rio. Também em suas margens foram construídos moinhos impulsionados por suas águas e que promoviam a moagem de trigo e milho, além da primeira fábrica de papel da cidade de Leiria.


A capacidade do rio de transportar sedimentos era grande, reduzindo o leito no sentido horizontal e vertical, provocando assoreamento e transbordamentos que destruíam lavouras e habitações. A ação antrópica acelerou esse processo natural. Já em 1880, concebeu-se um molhe na foz do rio. Apenas da década de 1950, ele foi construído em sua foz. A obra foi vantajosa para a agricultura, mas alterou a linha da costa. O espigão do norte passou a reter areia, enquanto o do sul erode a praia. Senti-me em Barra do Furado, onde, exatamente, o espigão da margem esquerda retém areia, enquanto, à direita, o mar corrói a praia e desalinha a costa. Ainda como em Barra do Furado, os espigões não impediram o entupimento da foz do Lis.

Foz do rio Lis completamente canalizado

Lá se operou o mesmo que aqui: solucionou-se um problema gerando outro, que, por sua vez, tenta-se solucionar hoje. Lá como aqui, essas soluções mirabolantes da engenharia não conseguem divisar o todo e geram impactos ambientais. Os espigões na foz do Lis foram encurtados de 80 para 70 metros, mas os espigões na foz do rio Mondego foram ampliados e passaram a reter a areia necessária às praias ao norte do Lis, já que a corrente predominante se desloca de norte para sul. Antes de se alcançar o Lis, na praia de Leirosa, um pequenino curso d’água chega ao mar, parecendo temporário. Ao norte dele, também foi construído um espigão que intercepta areia.  


Além do mais, o Lis foi canalizado em toda a sua extensão. Daí a aparência de vala. Sua seção tem a mesma largura, embora ela possa variar em pontos distintos do curso. Em Leiria, suas margens foram ajardinadas, dando a impressão de que se abriu um canal como os de Santos, por exemplo. Ao olhar frívolo e superficial do turista e do morador, a paisagem pode parecer bela, mas é dramática. Em Leiria, o Lis recebe a contribuição do rio Lena. Do Lis, partem canais de drenagem e irrigação, assim como 26 açudes em suas margens.


Outro problema que assola a bacia do Lis é a poluição. Da nascente à foz, os rios da bacia são poluídos tanto por resíduos líquidos como sólidos. Não existem estações de tratamento de esgoto. A agricultura contribui com insumos químicos. A mineração, os aviários, os matadouros, os curtumes, as indústrias dão uma enorme contribuição para agravar mais ainda o problema. Ao contrário da região intertropical, chove mais no inverno que no verão na zona temperada. Com pouca vazão de verão, a concentração de poluentes aumenta. No momento, a grande preocupação deriva das 400 suinoculturas na bacia do Lis. 

 

O lado bom da bacia, se é que ele existe, é a sobrevivência de caniços, freixos e salgueiros em suas margens. A biodiversidade de aves e de peixes, com todos os problemas, ainda é expressiva.


O rio Lis me evocou o riu Una, na Região dos Lagos. Com nascente a 130 metros de altitude e 23 quilômetros de extensão, o Una atravessava uma zona de banhado e desemboca no mar. Seu curso também foi todo canalizado, adquirindo o formato de um M. A concepção de domesticar rios foi exportada para países europeizados e alterou perigosamente os rios e lagoas.


Entre o Lis e o Tejo, encontra-se a lagoa de Óbidos, típica lagoa costeira, sendo o rio Arelho seu principal afluente. Ela se comunica com o mar por um canal dinâmico, ora aberto ora fechado. Ela padece de assoreamento e é periodicamente dragada. A fauna aquática e a avifauna ainda são diversificadas. A pesca é a principal atividade, sobretudo a mariscagem, ao lado do turismo.

Rio Arelho e lagoa de Óbidos

Chagamos ao famoso Tejo, de cuja foz partiram os navegadores portugueses em direção ao mundo no século XV, dando início à globalização ocidental e capitalista. Ele nasce na Espanha a 1600 metros de altitude e percorre cerca de 1000 quilômetros até chegar ao mar. É o mais extenso rio da Península Ibérica e, mesmo assim, menor que o Paraíba do Sul. Sendo o mais longo, não é o que tem maior bacia. Ele fica atrás do Douro e do Ebro.


Costuma-se chamar de estuário do Tejo o que é uma reentrância da costa, como as rias da Galícia. Estuário não é sinônimo de foz. Estuário é um ecossistema formado pelo encontro da água doce com a água salgada. É claro que a água do Tejo se mistura com a do mar nessa reentrância, mas nela predomina a água salgada. Essa enseada é larga e profunda, permitindo a navegação e a ancoragem de embarcações de grande calado. O rio Tejo, propriamente, não pode receber navios de grandes dimensões. O verdadeiro estuário situa-se no encontro do rio com essa enseada. A língua salina já alcançou 70 quilômetros rio acima.


A ocupação da bacia do Tejo por grupos humanos é muito antiga. Antes dos romanos, ali viviam povos nativos, também eles imigrados de vários lugares. O império romano erigiu cidades e grandes obras onde hoje existem Espanha e Portugal. O nacionalista acredita que o seu país e a sua língua existem desde sempre e para sempre. Ele minimiza a construção histórica de um país, a menos que engrandeça a visão nacionalista. A formação dos dois países ibéricos se deve a cristãos, mas não se pode esquecer a grande contribuição muçulmana. Uma história muito antiga e densa pode paralisar um povo. Pelo menos em Portugal, que conheci um pouco mais que Alemanha e Espanha, noto uma postura ambígua do seu povo, quer de conservadores quer de progressistas: o que fazer com a história do país? Exaltá-la ou repudiá-la? O poeta português Jorge de Sena tem um poema de ódio ao seu país. Já os poemas de Camões são de um amor irrestrito a Portugal.


Uma história longa e pesada pode mesmo atordoar. Poucos olham para o presente e o futuro do Tejo. No âmbito de sua bacia, os rios foram ultrapassados por pontes desde o tempo da dominação romana. Uma ponte causa menos impacto que uma barragem. A bacia do Tejo está repleta de barragens. São quase 40. A degradada bacia do Paraíba do Sul não é tão explorada assim. O desenvolvimento da agropecuária levou à construção de represas para acúmulo de água com fins de irrigação. 

Barragem de Torrejón no rio Tejo

Muitos núcleos urbanos ergueram-se nas margens dos rios formadores da bacia do Tejo, tanto na Espanha quanto em Portugal. Seria longo e ocioso enumerá-los. A maioria é muito antiga. Eles demandam água para o abastecimento público. Como no Paraíba do Sul, as águas do Tejo foram transpostas para o rio Segura, envolvido totalmente no interior do território espanhol. O sistema é chamado de Transvase Tejo-Segura. 


Senti-me em casa com essa transposição. Ela me evocou imediatamente a transposição Paraíba do Sul-Guandu, em Santa Cecilia. Mas existem diferenças: o Tejo desemboca no oceano Atlântico, enquanto o Segura desemboca no mar Mediterrâneo, que é formado pelo Atlântico. O Paraíba do Sul corre todo num território que se denominou historicamente de Brasil. Em sua bacia, formaram-se três capitanias, depois províncias e hoje estados. A bacia do Tejo foi esquartejada por Espanha e Portugal.

Transposição do rio Tejo para o rio Segura, nas imediações da foz

Mas existe uma resultante similar à nossa. A transposição, com vistas à irrigação e ao abastecimento público em área com forte turismo, pode retirar até 70,29% de água do Tejo. O rio se recupera parcialmente com a contribuição de afluentes, como aqui, mas, na altura de Aranjuez, ainda na Espanha, a vazão cai para menos de 6 m³/s, limite mínimo estabelecido, a conhecida vazão (caudal) ecológica. A vazão da bacia depende das chuvas e do derretimento de neve e chega ao seu máximo em março. A construção de barragens, reservatórios e a transposição abalaram profundamente a bacia. Existem ainda agravantes: a poluição das águas e a refrigeração das centrais nucleares espanholas de Trillo e Almarez e das centrais térmicas de Aceca (Espanha) e de Pego (Portugal). 

Central Nuclear Almaraz, na margem do Tejo

Apesar da criação, em 2000, do Parque Natural do Alto Tejo, e da Reserva Natural do Estuário do Tejo, 1916, para a proteção de várias espécies de aves, a bacia tejana agoniza com a perda de vazão e com a poluição, acarretando graves consequências para a biodiversidade e mesmo para os humanos. Golfinhos deixaram de frequentar a foz por causa da poluição. 


Em termos históricos, a atitude de repúdio ou de nostalgia não basta. Deve-se partir do que existe, planejar para o futuro e adotar uma nova postura diante da natureza. Lá e aqui. No mundo todo, aliás.

Escassez hídrica no rio Tejo


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