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A urbanização da margem esquerda do Paraíba do Sul em seu trecho final (séculos XVIII e XIX)

Por Arthur Soffiati

Apenas dois mapas importantes do século XVIII contêm alguma informação sobre o processo de urbanização do território situado entre os rios Paraíba do Sul e Itabapoana no seu trecho final, ou seja, depois de saírem da zona serrana. O rio Muriaé pode ser tomado com limite oeste desse trecho. A colonização europeia por meio dos portugueses do futuro norte-fluminense começou nesse território, no lado direito da foz do rio Itabapoana, em 1539, por Pero de Gois, donatário da Capitania de São Tomé. Ele fundou a Vila da Rainha e um porto anexo na última queda d’água do rio. Não há vestígios seguros da Vila da Rainha. Apenas do porto, cujas ruínas estão nas dependências da Pequena Central Hidrelétrica da Pedra do Garrafão.

Os mapas de autor anônimo (1747), de Manuel Vieira Leão (1767) e de Francisco João Roscio (1777) não assinalam sequer a freguesia de Santo Antônio. Manoel Martins do Couto Reis foi designado pelo vice-rei do Brasil, Luiz de Vasconcellos e Souza, para traçar um mapa do Distrito dos Campos Goitacás, pertencente à Capitania do Rio de Janeiro. Em 1785, ele desenhou não apenas o mapa como redigiu um primoroso relatório com informações preciosas sobre o Distrito. No território que estamos estudando, ele registrou apenas dois núcleos urbanos: Santa Catarina e Santo Antônio. Santa Catarina, na verdade, é a Vila da Rainha, um dos mais antigos núcleos europeus do Brasil e que não existia mais na época do cartógrafo. 

Couto Reis esteve lá e encontrou duas mós, telhas e ruinas de paredes. Além disso confundiu Pero de Gois, o fundador da vila, com Gil de Gois, seu filho, que fundou outro núcleo europeu na foz do rio Itapemirim com o nome de Santa Catarina das Mós. Este também não deixou rastros. Portanto, em 1785, só existia, na margem esquerda do Paraíba do Sul, o povoado de Santo Antônio, redução indígena e centro de uma freguesia. Ela foi o núcleo original do atual Guarus. 
Mapa topográfico do Distrito dos Campos Goitacás – Manoel Martins do Couto Reis - 1785

Encontramos, no dicionário de Saint-Adolphe, edição de 1863, um verbete sobre Santo Antônio de Guarulhos, origem do atual Guarus. Escreveu ele que a aldeia foi fundada em 1659 por dois capuchinhos franceses com a finalidade de catequisar índios da nação guarus, do grupo macro-jê. D. Pedro II, rei de Portugal, ordenou que os freis deixassem o Brasil e, por alvará de 3 de novembro de 1700, concedeu duas léguas de terra aos índios. Ainda no século XVIII, o padre Ângelo Pessanha tornou-se bastante conhecido e admirado pelos nativos na aldeia. Foi ele que ordenou a construção de uma igreja de pedra dedicada a Santo Antônio. O núcleo urbano passou, então, a prosperar com o cultivo de cana, arroz, mandioca, feijão e algodão, além da fabricação de açúcar. Uma das maiores riquezas da freguesia eram as madeiras, que existiam naturalmente em abundância. A produção de Santo Antônio de Guarulhos era conduzida de barco para o Rio de Janeiro, principalmente, pelo rio Paraíba do Sul e pelo mar. 

Por decisão episcopal, a igreja de Santo Antônio foi elevada a paróquia em 3 de janeiro de 1759. A elevação foi confirmada pelo soberano em 1808. Em 14 de junho de 1830, um decreto governamental criou em Santo Antônio uma escola de primeiras letras. A freguesia de Santo Antônio dominou a margem esquerda do Paraíba do Sul em seu trecho final. Seus domínios se estendiam, ao norte, até o rio Itabapoana (na época Cabapuana), divisa das capitanias, depois províncias do Rio de Janeiro e Espirito Santo; a leste até o oceano; a oeste até a serra dos Aimorés. Sua população, no tempo em que Saint-Adolphe escreveu o verbete, era estimada em 6 mil habitantes, entre brancos, índios, negros e mestiços.

Indo adiante na investigação, consultando mapas, sobretudo, uma carta da Capitania do Rio de Janeiro, datada de 1784 (?)-1803, registra esta apenas Santo Antônio, sede da freguesia de mesmo nome no âmbito da vila de Campos. Os cartógrafos não são muito confiáveis, como advertiu o Marquês de Lavradio a Luiz de Vasconcellos e Souza, no relatório em que o primeiro informa ao segundo, na passagem do vice-reinado, sobre o Brasil. Há trabalhos originais, como os de Manuel Vieira Leão (1767) e Manoel Martins do Couto Reis (1785) e há muitas cartas topográficas que simplesmente copiam informações dos trabalhos originais.

Em 1815, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied cruzou todo o território em questão rumo a Salvador. Depois de cruzar o rio Paraíba do Sul, o príncipe naturalista não registrou nenhum povoado. Ao chegar à praia de Manguinhos, sua expedição seguiu uma trilha pela vasta floresta que então existia na região. No caminho, encontrou dois caçadores apenas. Seguindo adiante, ele alcançou a fazenda Muribeca, que havia pertencido aos Jesuítas. Em 1818, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire fez o mesmo trajeto e também não registrou qualquer núcleo habitacional até a fazenda Muribeca.

Em 1819, José Carneiro da Silva foi sumário quanto à margem esquerda do Paraíba do Sul em seu estirão final. Escreveu que: “Os missionários Capuchinhos Fr. Jacques e Fr. Paulo, em mil seiscentos e setenta e dois fundaram a primeira aldeia nesse país com a invocação de S. Antônio, e ausentando-se estes, vieram Franciscanos do convento do Rio de Janeiro, e mudaram a aldeia para o lugar em que hoje existe a freguesia; e tendo-se os índios transportado a outros lugares, as terras da aldeia foram povoadas pelos habitantes do país, e em mil setecentos e cinquenta e nove foi ereta em freguesia, por edital de D. Fr. Antônio do Desterro, Bispo do Rio de Janeiro, e desmembrada da de S. Salvador. Esta freguesia tem unicamente a capela filial do Divino Espírito Santo”.

As informações obtidas até aqui são insuficientes para afirmar a existência de outro núcleo urbano na margem esquerda do rio Paraíba do Sul nos primeiros anos do século XIX além da aldeia de Santo Antônio, embora já existissem ali muitas propriedades rurais no século XVIII, como mostra o mapa de Couto Reis, de 1785. No mais, dominavam os Sertões do Muriaé, do Nogueira e das Cacimbas.

José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, escrevendo na década de 1820, copiava as poucas informações existentes sem a preocupação de ser acusado de plagiador, pois o plágio era muito comum em seu tempo. Em 1823, foi desenhado o primeiro mapa da província do Rio de Janeiro, nova denominação para a capitania no Império. Nele, aparece apenas a aldeia de Santo Antônio e a vila de Santa Catarina das Mós, como, na carta de Couto Reis, confundindo-a com a Vila da Rainha, então apenas ruínas da primeira tentativa de fundar um núcleo urbano na antiga Capitania de São Tomé.

Prosseguindo a investigação, recorremos a Antônio Muniz de Souza, sergipano e naturalista autodidata que morou em Campos nos anos de 1827 e 1828, deixando informações preciosas sobre sua estada na vila. Ele subiu o rio Muriaé até onde possível e ficou maravilhado com sua beleza. Admirou também os seus recursos, que, segundo ele, deveriam ser explorados. Registrou já o funcionamento de muitos engenhos de açúcar no trecho final do rio. Quanto à Aldeia de Santo Antônio, ela merece do naturalista amador apenas menção.
Resquícios do canal do Nogueira em 1940. Notar a floresta remanescente em suas margens

Na década de 1830, três canais de navegação foram abertos na margem esquerda do rio Paraíba do Sul no trecho em questão: Nogueira, Cacimbas e Onça. Os três ligavam o Paraíba do Sul a três pontos dos Sertões do Muriaé, do Nogueira e de Cacimbas. O objetivo dos três era o escoamento da produção rural que já avançava na margem esquerda, principalmente madeiras nobres. O da Onça, ligava o rio Muriaé, último afluente do Paraíba do Sul, à lagoa da Onça. Na bacia dela, foi instalado o Porto da Madeira para centralizar a madeira cortada a ser embarcada. O canal do Nogueira deveria ligar o Paraíba do Sul à lagoa do Campelo, mas foi interrompido pelos altos custos de abertura. O de Cacimbas aproveitou o brejo de Cacimbas, ligando a lagoa do Macabu, nos tabuleiros, ao Paraíba do Sul. Este canal contribuiu de forma significativa para a conquista do Sertão das Cacimbas e para sua progressiva urbanização.  
Canal de Cacimbas em 1939

Um informante de peso é o major engenheiro Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde, que editou um relatório dos mais importantes em 1837. Sendo chefe da 4ª Seção de Obras Públicas da Província, ele descreveu as estradas existentes que ligavam os principais núcleos urbanos do norte da Província ao Rio de Janeiro aos de Minas Gerais. Uma delas tinha início em São João da Barra e término em Mariana. Ele a chamava de estrada do Muriaé por seguir o curso desse rio. Ela entrava na Freguesia de Santo Antônio dos Guarulhos e atendia a Campos.  

Daí em diante, uma série de mapas torna-se a principal fonte sobre a urbanização da margem esquerda do rio Paraíba do Sul em seu trecho final. Em 1839, foi publicada a famosa Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro, coordenada e desenhada por Pedro Taulois, mas, na verdade, um trabalho coletivo que reuniu vários cartógrafos renomados. A maioria era formada por militares. As expectativas de encontrar novos núcleos urbanos na área estudada se frustram, pois o que se encontra é apenas Santo Antônio de Guarulhos.

No ano seguinte, a Carta da Província do Rio de Janeiro parece uma cópia empobrecida do trabalho cartográfico anterior, figurando nela também apenas Santo Antônio. O mesmo pode se dizer da carta de 1846, elaborado por dois ilustres cartógrafos. Apenas figura Santo Antônio dos Guarulhos. Vindo do Espírito Santo em fins da década de 1850, o suíço Jacob J. Tschudi pousou na fazenda São Pedro, do André Gonçalves da Graça, famoso traficante de escravos. Prosseguindo sua viagem rumo a Campos, sua expedição acompanhou a margem esquerda do rio Paraíba do Sul até o ponto fronteiriço a Campos para atravessá-lo em embarcações. Como ele, tendo de passar por Santo Antônio de Guarulhos, nenhum registro fez da localidade, pode-se pensar que teria procedido assim com relação a São Francisco de Paula, que vai figurar no mapa que se comenta a seguir. 

Quinze anos depois da carta de 1846, os mesmos cartógrafos divulgam a Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro, organizada em atenção a um decreto de 1857. A carta foi formulada entre 1858 e 1861. Agora, além de Santo Antônio de Guarulhos, aparecem São Francisco de Paula (atual São Francisco de Itabapoana), São Sebastião (atual Barra do Itabapoana) e Morro do Coco (ainda hoje com esse nome), novas freguesias; uma infinidade de fazendas com os nomes de seus proprietários assinalados e de possíveis lugarejos. Pode-se encontrar Outeiro e Buena. Este mapa requer um estudo particular pela quantidade e qualidade de informação sobre a margem esquerda do Paraíba do Sul no trecho entre dele e o rio Itabapoana; entre o rio Muriaé e o mar. Parece que os mapas anteriores não estavam registrando o processo de ocupação do chamado Sertão de São João da Barra. Não é possível que todos os registros feitos pelos autores correspondam a localidades instaladas em quinze anos, desde 1846. Mais fácil entender que os mapas imediatamente anteriores a este tenham repetido o vazio dos mapas do século XVIII e do princípio do século XX.
Margem esquerda do rio Paraíba do Sul em seu trecho final, segundo Bellegarde e Niemeyer na Carta corográfica da Província do Rio de Janeiro, de 1861

  Campos dos Goytacazes era, em 1860, sede de uma das doze comarcas da Província do Rio de Janeiro. A comarca contava com duas cidades: Campos e São João da Barra. Esta foi elevada à condição de cidade em 1850. Em 1785, Manoel Martins do Couto Reis informava que o grande distrito de Campos dos Goytacazes tinha seis freguesias e duas vilas. As freguesias eram São Salvador, com a vila de mesmo nome, e as freguesias de São Gonçalo, Capivari, Nossa Senhora das Neves e Santo Antônio. A freguesia de São João contava com a vila de São João. A freguesia de Santo Antonio dominava o enorme território da margem esquerda do rio Paraíba do Sul em seu trecho final, limitando-se com o rio Cabapuana (Itabapoana), com o mar e com a serra. 

O mapa de 1862 mostra que a grande freguesia de Santo Antônio foi dividida em quatro: Santo Antonio, Morro do Coco, São Francisco de Paula e São Sebastião, sem contar as muitas fazendas, os engenhos e as capelas, que, como se sabe, acabavam originando povoações.

O trecho estudado pouco mudou entre 1860 e 1920, levando-nos a concluir que o chamado Sertão de São João da Barra não acompanhou o mesmo ritmo de urbanização de todo o restante das províncias/estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A urbanização progressiva do território será estudada em outro artigo, também com base, principalmente, em mapas geográficos.

Para conhecer melhor o assunto

  • ANÔNIMO. Capitania do Rio de Janeiro – 1747. In: LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945.
  • ANÔNIMO. Carta da Província do Rio de Janeiro, 1840.
  • ANÔNIMO. Carta geográfica da Província do Rio de Janeiro copiada no Real Arquivo Militar. Lisboa: 1823.
  • ANÔNIMO. Plano da Capitania do Rio de Janeiro. Levantado em 1784 (?). Copiada em 1803 por Jozé Fernandes Portugal.
  • BELLEGARDE, Henrique Luiz de Niemeyer. Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.F. da Costa, 1837.
  • BELLEGARDE, Pedro D’Alcantara e NIEMEYER, Conrado Jacob de. Carta corográfica da Província do Rio de Janeiro. 1861.
  • COUTO REIS, Manoel Martins do. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
  • L’ILE ADAM, Visconde J. de Villiers de. Carta topográfica e administrativa da Província do Rio de Janeiro e do Município Neutro. Rio de Janeiro: Litografia Imperial de Vr. Larée, 1846.
  • LAVRADIO, Marquês de. “Relatório do Marquês de Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Sousa, que o sucedeu no Vice-Reinado”. Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IV, 2ª ed. Rio de Janeiro: Tip. de João Ignacio da Silva, 1863. 
  • LEÃO, Manoel Vieira. Carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por ordem do Conde de Cunha, Capitão General e Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: 1767.
  • PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro, 3º vol., 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. 
  • ROSCIO, Francisco João. Carta corográfica da Capitania do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,1777.
  • SAINT-ADOLPHE, J.C.R. Milliet de. Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil. Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863.
  • SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUsp, 1974.
  • SILVA, José Carneiro da. Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país. 3ª edição. Campos dos Goytacazes, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010.
  • SOFFIATI, Arthur. Os canais de navegação do século XIX no norte fluminense. Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego nº 2 (Edição Especial). Campos dos Goytacazes: CEFET Campos, jul/dez 2007.
  • SOUZA, Antonio Moniz de. Viagens e observações de um brasileiro, 3ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2000. 
  • TAULOIS, Pedro. Carta corográfica da Província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: seção de iconografia da Biblioteca Nacional, 1839, cód. ARC 13-4-18.
  • TSCHUDI, Jacob J. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUsp,1980.
  • WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUsp, 1989.


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