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Chuvas de janeiro no Sudeste brasileiro... até agora

Por Arthur Soffiati

Depois de passado o episódio de chuvas intensas na região Sudeste, em janeiro de 2020, lembrei de um tio meu que confiava mais na natureza para prever o tempo que nos meteorologistas e nas moças do tempo. Uma cigarra cantou forte no meio chuva, indicando que o sol voltaria a aparecer aos poucos. Não quero dizer que esse canto valha para todo o verão. Pode chover novamente talvez com mais intensidade. Não é hora ainda de fazer um balanço geral sobre as chuvas de verão de 2020. Num balaço parcial, contudo, pode-se dizer que o volume de chuva no território em que se ergue Belo Horizonte e cidades periféricas foi o maior desde que se começou a medir precipitações pluviométricas por lá, há mais de cem anos. No norte/noroeste fluminense e no sul capixaba, calcula-se também que as chuvas não têm precedentes quanto ao volume e quanto aos estragos materiais.

 Transbordamento do rio das Velhas, em Minas Gerais

Afirma-se também que os rios Iconha e Benevente conheceram enchentes nunca ocorridas nas respectivas bacias. O dilúvio que se abateu sobre a área de Friburgo em 2011, as chuvas sobre a região de Belo Horizonte e Sul do Espírito Santo em 2020, os incêndios na Austrália em 2019-20, deveriam ser considerados como fenômenos climáticos extremos produzidos pelo aquecimento global. Não basta reconhecer apenas que ele se deve a ações humanas coletivas, principalmente a queima de combustíveis fósseis, embora não somente. As temperaturas estão cada vez mais altas desde a década de 1980. 2016 foi o primeiro ano mais quente nos últimos quarenta anos. 2019 foi o segundo. Mesmo que todos os governos e empresário decidissem mudar o sistema econômico mundial hoje, tais mudanças seriam lentas, pois a humanidade globalizada é prisioneira da economia de mercado. Além do mais, o aquecimento global e os outros nove problemas listados pelo Grupo Resiliência, de Estocolmo, não retornariam imediatamente a níveis toleráveis. Acontece que os governos e os empresários têm um discurso de mudança, mas não uma prática correspondente, como seu viu no Fórum Mundial de Davos recentemente.

Rio Pomba em Cataguazes (MG)

Além disso, não estão sendo promovidas mudanças na ocupação do solo de modo a enfrentar as tormentas que estão se agravando ano a ano. Aliás, elas estão sendo promovidas sim, mas no sentido de agravar mais ainda os ataques do céu. O desmatamento no mundo, o empobrecimento da biodiversidade, a poluição da água doce e salgada, o barramento de rios, a construção em áreas perigosas, a impermeabilização do solo, o crescimento progressivo da exploração de combustíveis fósseis, a fabricação de veículos automotores movidos por esses combustíveis, o crescimento desornado e individualista, a corrida desenfreada pelo aumento do produto interno bruto, a competição entre países, as guerras, o aumento da produção de armamentos, o uso intensivo de agrotóxicos e aditivos químicos aumentam ano a ano como se nada estivesse acontecendo na terra e no céu.

Rio Muriaé em Itaperuna

Estamos queimando a vela pelas duas pontas. Adensamos a atmosfera com gases do efeito estufa, por um lado, e destruímos o planeta, por outro. As chamas que ardem nas duas pontas da vela são volumosas. Elas não podem ser apagadas repentinamente, mas deve-se extingui-las progressivamente. Pelo menos, mantê-las dentro de limites controláveis.

Rio Carangola em Porciúncula

No que se convencionou denominar de regiões norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro, o rio Paraíba do Sul vem aguentado o tranco por enquanto. Sua calha ainda está comportando as águas de chuva que caem nele diretamente ou nos seus afluentes. Os rios Pomba, Muriaé e Carangola, afluentes e subafluente do Paraíba do Sul, transbordaram e afetaram núcleos urbanos, principalmente, como Santo Antônio de Pádua, Laje do Muriaé, Itaperuna (muito afetada), Italva, Cardoso Moreira, Porciúncula e Natividade. Na bacia do Itabapoana também houve transbordamento, atingindo Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte, cidades conurbadas entre os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Transbordamento do rio Itabapoana em Bom Jesus do Itabapoana

No vizinho Estado do Espírito Santo, limito o balanço aos rios Itapemirim, Iconha e Benevente. Sei que outras bacias foram afetadas, mas não conto com informações suficientes sobre elas. A bacia do Itapemirim tornou-se muito vulnerável a enchentes e estiagens com o desmatamento, o assoreamento e a urbanização. Cachoeiro do Itapemirim sempre sofre com oscilações extremas: enchentes e estiagens. A cidade avançou sobre o rio. Agora, com chuvas que se precipitam no maciço do Caparaó onde o rio tem sua nascente, o rio avança sobre a cidade. Não se trata de conceder ao rio emoções humanas e dizer que ele apenas retoma o que é seu. Na natureza, o máximo de consciência foi alcançado exatamente pelos humanos. Um rio não tem noção de propriedade privada. Não se vinga. Apenas cumpre seus ciclos naturais, que podem ser agravados ou minorados pelas sociedades humanas. 

 Cachoeiro do Itapemirim. Em cima: cidade invadindo o rio; embaixo: rio invadindo cidade  

Em Cachoeiro do Itapemirim, como em quase todas as cidades do Brasil, os humanos não sabem onde pisam, não respeitam limites e contribuem para o agravamento das enchentes e das estiagens. Ignoramos morar num país tropical, onde as chuvas costumam ser copiosas. A Amazônia ainda está produzindo rios voadores que descem para o Sul/Sudeste pelas zonas de convergência corredores do Atlântico sul. Comportamo-nos, em parte, como se morássemos na zona temperada. Estima-se que o rio Itapemirim sofreu a mais ingente enchente registrada até hoje. Castelo e Vargem Alta, no âmbito da bacia, também sofreram inundações. Na bacia do pequeno rio Iconha, não se tem notícia de enchente mais destruidora que a de 2020, sobretudo na cidade de mesmo nome, que foi arrasada. Na bacia vizinha do rio Benevente, a cidade de Alfredo Chaves, na nascente do rio sofreu inaudita enchente. 

Transbordamento do rio Castelo em Castelo

Notar que as cidades são mais afetadas que a zona rural. Ou é preciso aprofundar nossa análise? Santo Antônio de Pádua, Itaperuna, Porciúncula, Italva, Cardoso Moreira, Bom Jesus do Itabapoana e Bom Jesus do Norte invadiram a área de expansão dos rios, lançando esgoto e lixo nele. Quando enchem e buscam suas áreas marginais, elas estão ocupadas por prédios. Seus leitos estão entupidos por lixo.

 Estragos feitos pelo rio Iconha na cidade de Iconha

Cachoeiro do Itapemirim parece a cidade campeã em invasão de leito e lançamento de lixo. Iconha estreitou o pequenino rio às margens do qual se ergueu. Vargem Alta e Alfredo Chaves cresceram dentro de um vale que mais parece uma panela. As chuvas se acumulam facilmente neles.

 Enchente em Vargem Alta

Mas o município de São Francisco de Itabapoana está embaixo d’´água sem transbordamento significativo de rio. Todo o território municipal situa-se entre a foz do Paraíba do Sul e a foz do rio Itabapoana. Existe ainda o rio Guaxindiba entre eles. No entanto, as terras baixas junto ao mar favorecem o acúmulo de águas pluviais. Além dos três rios, há córregos barrados. A sede do município e Guaxindiba blindaram o solo. Atravessando o rio Itabapoana, ingressa-se em Presidente Kennedy e Marataízes, municípios cujos territórios se assemelham ao de São Francisco de Itabapoana. Mas não tenho informações sobre eles. É de se supor que muita água de chuva tenha se acumulado nos córregos também barrados e em depressões dos terrenos. Em breve, a água das chuvas correrá para o mar, se infiltrará no solo e será evaporada. Virá, então, a estiagem, mais duradoura que as enchentes. E reclamaremos. Atacaremos o problema apenas superficialmente, como fazemos com as enchentes. No próximo ano, repetiremos tudo novamente: consultaremos o volume de chuva a ser precipitado; olharemos réguas que medem nível de rios; retiraremos pessoas de suas casas e a colocaremos em abrigos, faremos donativos, praticaremos o amor ao próximo, desviaremos recursos para nossos bolsos. E nada terá mudado.

 Inundação em Alfredo Chaves, na bacia do rio Benevente

Como escreveu Gilberto Freyre em 1937, viramos as costas para os rios e abusamos deles. A surra que costumamos sofrer dos rios com muita ou pouca água não é vingança. É o resultado da crise ambiental que urdimos e estamos cultivando. Voltar a eles com responsabilidade não resolverá totalmente os problemas de seca (mais intenso que o de umidade) e de enchentes. Mas restabelecerá pelos menos um equilíbrio instável. 

Alagamento em São Francisco de Itabapoana. Foto Simone Pedrosa

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