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A água em três sistemas hídricos do norte fluminense

Por Arthur Soffiati

A pesquisa científica sobre os sistemas hídricos regionais ainda se encontra no nível de isolar ecossistemas aquáticos e descrevê-los, avaliar suas características físicas e a qualidade de suas águas sem relacioná-los com seu contexto geológico e hidrológico. As lagoas mais avaliadas, pelo que mostra a literatura publicada, são as Feia, de Cima, do Campelo e do Vigário. Ainda não demos um passo adiante dessas análises, que se repetem e propagam informações incompletas e incorretas.

A geógrafa Leidiana Alonso Alves deu uma grande contribuição ao situar a lagoa do Campelo em seu contexto geológico e hidrológico em “Análise geossistêmica da variação temporo-espacial dos espelhos d’água das lagoas do sistema Campelo entre os anos de 2006 e 2015” (Campos dos Goytacazes: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, 2016). Não seria necessário que ela avaliasse as conjunturas vividas pelo sistema em dez anos. Bastaria que definisse a estrutura dele, assim, como seus limites geográficos, e examinasse, em linhas gerais, seu comportamento em tempos de chuva e de estiagem.

O geógrafo Vinícius Santos Lima também avançou bastante no conhecimento do sistema hídrico constituído pelos rios Imbé e seus afluente, rio Urubu, lagoa de Cima, rios Ururaí e Preto, lagoa Feia e canal da Flecha. Ele começou a estudar a lagoa Feia em “Os sistemas de informações geográficas como método de análise ambiental na variação sazonal do espelho d’água da Lagoa Feia no período de 2000 a 2011”, sua monografia de licenciatura (Campos dos Goytacazes: Instituto Federal Fluminense, 2012). Continuou com o mesmo ecossistema em “Variação espaço-temporal do espelho d’água da Lagoa Feia, RJ” (Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2013), dissertação de mestrado, e em “Relações sistêmicas na bacia do rio Imbé-Ururaí - RJ e seus reflexos nas inundações (Niterói: Universidade Federal Fluminense 2019), sua tese de doutorado. Ambos os estudiosos continuam aprofundando o exame de seus objetos em artigos acadêmicos e em comunicações e eventos científicos.

Nossos interesses convergem. Tanto eles quanto eu buscamos compreender os contextos em que os sistemas hídricos estudados se inserem. Neste escrito despretensioso, busco apresentar minhas inquietações intelectuais sobre os sistemas hídricos da bacia do Paraíba do Sul no seu trecho final. Sabemos muito bem que as águas provêm em grande parte das chuvas que se precipitam na zona serrana e correm na forma de fluxo hídrico para as terras baixas. Aqui, dispensamos a zona serrana de nossa análise. Restringimo-nos aos tabuleiros da margem esquerda do rio Paraíba do Sul, à grande planície fluvial e à grande restinga, incluindo parte da restinga de Jurubatiba até a lagoa de Carapebus.

Sem a pretensão de esgotar o assunto, identificamos, a título de ensaio, três sistemas hídricos: o do baixo Paraíba do Sul, o da lagoa do Campelo e o do rio Ururaí. Nenhum deles se resume aos sistemas hídricos que lhe emprestam os títulos. Para compreender suas estruturas e dinâmicas, cumpre voltar a 1500, data que simboliza a ausência da visão ocidental de mundo, altamente transformadora dos ambientes naturais e sociais. Até 1500, o território correspondente ao Brasil atual era habitado por povos com economia de subsistência, mesmo aqueles que desenvolveram alta cultura neolítica – quase civilização – na Amazônia.

Havia transformação dos ambientes naturais, mas ela não era intensa como aquela instalada por europeus. Quanto à área em questão, no futuro correspondente à maior parte do Norte Fluminense, os tabuleiros e a grande planície fluviomarinha eram cortadas por cursos d’água com regime pluvial regulado pelo traçado dos rios, pela profusão de lagoas e pelas formações vegetais nativas. 

Os sistemas
Sistemas Baixo Paraíba do Sul (polígono em azul); Campelo (polígono em vermelho); Ururaí (polígono em verde)

Caracterizamos os três sistemas:  

1- Baixo Paraíba do Sul: envolve o curso do rio principal entre o ponto em que ele deixa a zona serrana, em Itereré, até sua desembocadura no mar. Devemos incluir o baixo curso do Muriaé, seu último grande afluente. Nele, desembocava o pequeno rio da Onça, depois de alimentar a grande lagoa da Onça, em sua margem esquerda. Ainda em terreno de tabuleiros, apontamos as lagoas do Lameiro, Limpa, das Pedras, do Cantagalo, do Vigário, Maria do Pilar, Taquaruçu, Olaria e Brejo Grande. Todas elas contavam com ligação superficial aos rios Muriaé e Paraíba do Sul. No setor norte da restinga de Paraíba do Sul, apontamos as lagoas do Campelo e do Arisco, além de outras menores. Todas contavam com áreas muito maiores que as atuais. As lagoas do Campelo e do Arisco ligam-se naturalmente ao rio Paraíba do Sul pelo córrego da Cataia, principalmente, e, eventualmente, ao rio Guaxindiba pelo valão de Mundeuzinho. Sobressaía-se o grande brejo de Cacimbas, que cortava quase toda a extensão do segmento norte da restinga.
Sistema Baixo Paraíba contido no polígono em azul. Alberto Ribeiro Lamego – Mapa da planície norte-fluminense, 1954

2- Sistema Campelo:  até 5.100 anos antes do presente, as atuais lagoas de tabuleiros entre os rios Paraíba do Sul e Itabapoana eram pequenos cursos d’água que desembocavam no mar. A parte central dessa costa foi tamponada com areia transportada pelo mar e retida pelo jato do rio Paraíba do Sul. Formou-se, assim, pouco a pouco, a ponta norte da grande restinga que, com sedimentos carreados da zona serrana e dos tabuleiros, adicionou-se à grande planície fluviomarinha do norte fluminense. Na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, totalmente em terreno de restinga, constitui-se a lagoa do Campelo. Ela passou a receber a contribuição das lagoas da Formação Barreiras, oriundas da vedação dos córregos. Leidiana Alonso Alves, em trabalho já mencionado, examinou esse sistema, mostrando a ligação das lagoas de tabuleiros, sendo principal a da Saudade, e a lagoa do Campelo. Ela incluiu no sistema também as lagoas da margem esquerda do rio Paraíba do Sul, que nitidamente ligam-se a ele na formação natural da planície. Por outro lado, excluiu o grande brejo de Cacimbas. Proponho rever a inclusão daquelas e a exclusão deste.

Deve-se observar que a lagoa do Campelo cumpre função semelhante a do mar, ao receber a contribuição dos rios-lagoas centrais dos tabuleiros, embora a ligação entre as lagoas com forma alongada e dendrítica e a lagoa do Campelo não se mostre na forma perceptível de afluentes.  
Sistema Campelo circunscrito em polígono azul. Alberto Ribeiro Lamego – Mapa da planície norte-fluminense, 1954

3- Sistema Ururaí: todos os sistemas hídricos do complexo formado pela unidade de tabuleiros situada entre a margem esquerda do rio Paraíba do Sul e a margem direita do rio Itapemirim e a lagoa de Carapebus (marco tomando de forma provisoriamente empírica) são hipercomplexos. O sistema Ururaí, por exemplo, é formado pelos rios Imbé e Urubu, sendo que o primeiro recolhe a contribuição dos pequenos rios que descem da vertente atlântica da Serra do Mar, que funciona como nítido divisor de águas: a face interna verte para o Paraíba do Sul, com os rios Dois Rios e do Colégio como principais; enquanto que a face externa verte para o sistema Ururaí. Os rios Imbé e Urubu formam a lagoa de Cima, que escoa suas águas pelo rio Ururaí. Por sua vez, nas origens da colonização, o rio Preto, também descendo da Serra do Mar, bifurcava-se em dois braços no seu estirão final: o da esquerda ganhava nitidez no tempo das águas e desemboca no rio Paraíba do Sul, enquanto que o da direita corria perenemente para o rio Ururaí. Esse é o ponto em que os sistemas Paraíba do Sul e Ururaí mais se aproximam.

Continuando, o rio Ururaí desemboca na lagoa Feia, que recebe o contributo do rio Macabu, além de outros menores. Por fim, a lagoa Feia fluía por diversos vertedouros que se reuniam num complexo fluxo hídrico denominado rio Iguaçu. Ele corria de oeste para leste até chegar ao mar pela atual barra da lagoa do Açu. Assim, o título Ururaí para nomear todo o sistema é arbitrário. Ele pode receber o nome de cada um dos rios ou lagoas que o compõem. 
Sistema Ururaí (circundado em vermelho). Mapa da Baixada dos Goytacazes elaborado por Marcelino Ramos da Silva para a Comissão de Estudos do Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro - 1896

A interligação dos sistemas

1- Sistemas Paraíba do Sul- lagoa do Campelo 
A complexidade dos três sistemas hídricos (em 1500, por exemplo) era muito maior do que atualmente. A margem esquerda do rio Paraíba do Sul é ligeiramente mais elevada que seu nível médio. Na estação das cheias, as águas transbordavam e alcançavam as lagoas de sua margem esquerda. Quando as águas baixavam, grande parte delas era retida nas lagoas e outra parte retornava ao rio. Os engenheiros José Antonio Martins Romeu e Francisco Saturnino Rodrigues de Brito perceberam claramente essa peculiaridade. Na década de 1920, Saturnino de Brito escreveu: “Na margem esquerda [do rio Paraíba do Sul] as condições das inundações são algo diferentes: – geralmente as águas saem do rio, aumentam lagoas e banhados, inundam terras, – mas, quando a cheia baixa no rio principal, as águas de inundação a ele voltam, quer normalmente, quer descendo paralelamente para entrar no rio a jusante. Portanto, na defesa contra as inundações nessa margem convém estudar, como recurso auxiliar, a canalização das águas para descarga a jusante, quer no Paraíba, quer diretamente no mar, em Gargaú. Esta obra, – para dar resultado eficiente, como solução do problema, – custaria caríssimo, pois seria necessário cavar um rio desde a barra do Muriaé até o oceano. Poder-se-á, porém, abrir um canal de drenagem, de utilidade incontestável e no futuro voltar a examinar a sua transformação em canal de navegação marítima e fluvial, de acordo com a indicação do engenheiro Martins Romeu” (BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. “Defesa contra inundações”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944).
Em 1934, Hildebrando de Araujo Góes não levantou nenhuma discussão a respeito dessa particularidade, aceitando a observação de Saturnino de Brito, cujo projeto serviu de base aos trabalhos iniciais da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, criada pelo governo federal um ano antes (“Saneamento da Baixada Fluminense”. Rio de Janeiro: Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, 1934). Camilo de Menezes discordou de Saturnino de Brito em questões cruciais, mas aceitou como ponto pacífico a declividade suave da margem esquerda em direção ao leito do Paraíba do Sul em seu estirão final (“Descrição hidrográfica da Baixada dos Goitacases”. Campos: Ministério da Viação e Obras Públicas/Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense/Residência da Baixada dos Goitacases, abril de 1940 (datil)). Os Escritórios de Engenharia Coimbra Bueno, em 1944, Hildalius Cantanhede e Galiolli (DNOS. “Saneamento das várzeas nas margens do rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis: estudos e planejamentos das obras complementares. Relatório geral”. Rio de Janeiro: Engenharia Gallioli, 1969), endossaram Saturnino de Brito.

Assim, existe uma íntima relação entre o sistema Baixo Paraíba do Sul e lagoa do Campelo. Se chove apenas neste segundo, a água excedente descia para o Paraíba do Sul por canais naturais, como o da Cataia e alguns outros. Se o Paraíba do Sul transbordasse, as águas subiam pelos mesmos canais e alcançavam brejos e lagoas, onde ficavam retidas quando o excedente voltava ao Paraíba do Sul. Portanto, os sistemas funcionavam em sentido de mão dupla. 

2- Sistemas Paraíba do Sul – Ururaí: A ligação entre o rio Paraíba do Sul e o sistema Ururaí sempre foi visível e indiscutível no plano superficial. Ao contrário da margem esquerda do rio Paraíba do Sul, a margem direita apresenta uma ligeira declividade em direção ao mar. Nas cheias do rio Paraíba do Sul, na planície, a água excedente corria em direção à costa e não mais retornava ao rio quando seu nível baixava. Essa água abriu drenos naturais meandrantes que conduziam lentamente as águas das cheias em direção ao rio Ururaí, lagoa Feia e rio Iguaçu. No caminho, essas águas se acumulavam em infinitas lagoas, a ponto de formar um grande brejo. 

Já a ligação dos dois sistemas pelo lençol freático foi mais difícil de ser percebida. Ela foi aventada em 1819 por José Carneiro da Silva, que suspeitou dela (“Memória topográfica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e comércio oferecida ao muito alto e muito poderoso Rei D. João VI por um natural do país”, 3ª edição. Campos dos Goytacazes, Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010). Em 1837, o major Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde corrobora Carneiro da Silva, dizendo-se inclinado “...a pensar, com o sensato Autor da ‘Memória Topográfica e Histórica de Campos’, que semelhante fenômeno é devido a grandes filtrações, e a ocultos canais, que absorvem, e derivam grande parte de suas águas; ao menos muitos fatos concorrem para fortificar esta opinião.” (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro apresentado à respectiva Diretoria em agosto de 1837”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. F. da Costa, 1837). Quase noventa anos depois de Bellegarde, Saturnino de Brito considera que “... é (...) natural que depois do rio sair da região montanhosa (em Itereré), uma parte de suas águas corra subterraneamente, alimentando o grande lençol aluviano da planície formada pelo próprio rio em colaboração com mananciais menores e com o oceano; este lençol desce para a bacia da lagoa Feia e para o mar [como suspeitavam Aires de Casal e o major Bellegarde]” (BRITO, Roberto Saturnino Rodrigues de. “Defesa contra Inundações”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944).

O engenheiro deve ter confundido Casal com Carneiro da Silva, já que o primeiro não fez tal afirmação. Os autores do “Relatório Gallioli”, que, quase certamente desconheciam os escritos do Visconde de Araruama e do major Bellegarde, parecem ter redescoberto a pólvora ao concluírem que “(...) ficou comprovada a sistemática correspondência entre as variações dos níveis do rio Paraíba e da lagoa Feia e, ainda, o fato, quase inexplicável, de que, durante os longos períodos de estiagem, a lagoa Feia, não se resseca, embora as contribuições dos cursos d’água acima citados [rios Ururaí e Macabu, principalmente], tomados em conjunto, fiquem então reduzidos a uma descarga insignificante, da ordem de 7 m3/s. Note-se que a lagoa perde por evaporação uma descarga média aproximada de 8 m3/s (...) pode-se admitir que existe uma comunicação subterrânea entre o rio Paraíba e a lagoa Feia.” (GALLIOLI, Engenharia. “Baixada Campista: Saneamento das Várzeas nas Margens do Rio Paraíba do Sul a Jusante de São Fidélis - Relatório Geral”. Rio de Janeiro: Gallioli, 1969). 

Conclui-se, pois, que os três sistemas são porosos. Não existem entre eles divisores de água nítidos. Com exceção da ponta da Serra do Mar, na margem direita do rio Paraíba do Sul, os outros possíveis divisores de água são facilmente ultrapassados por cheias medianas, reunindo o que parece ser separado.

O grande comandante dos sistemas é o rio Paraíba do Sul. Em estado normal, suas águas podem verter em direção ao sistema Campelo e ao Sistema Ururaí. E certamente vertem. Em episódios de transbordamentos, o excedente hídrico se alastra pela margem esquerda, fica retida em depressões (lagoas) e retornam ao leito do rio quando ele retoma a normalidade. Pela margem direita, as águas de cheia transbordavam, corriam por vertedouros naturais, ficavam retidas em lagoas, alcançavam a bacia do rio Iguaçu e chegavam ao mar.  

A água nos três sistemas

Em 13 de dezembro de 2019, registrou-se o nível de 7 metros para o Paraíba do Sul na altura da cidade de Campos. As chuvas que caíram em Minas Gerais desceram pelos afluentes do rio e elevaram seu nível em 1,6 metro. Assim, ele passou de 5,4 metros para 7 metros, sem risco de transbordamento, que só ocorre com a cota de 10, 40 metros. 

Se o volume de água que elevou o nível do Paraíba do Sul em 1,6 metros caísse exclusivamente no sistema Campelo, certamente ocorreria um exagerado engordamento de todos os corpos hídricos que o formam. O escoamento das águas para o rio Paraíba do Sul far-se-ia de forma muito lenta pelos canais naturais, notadamente o da Cataia. Consideremos que ainda estamos em 1500.

Caso o mesmo volume se precipitasse nas cabeceiras do sistema Ururaí, a cheia também seria avantajada. As águas desceriam pelos pequenos rios serranos e engordariam os rios Imbé e Urubu, a lagoa de Cima, o rio Ururaí (que receberia o contributo do rio Preto), espraiar-se-iam na grande lagoa Feia (com cerca de 400 m² na época e fluiriam lentamente pelos inúmeros defluentes que formavam o rio Iguaçu até alcançar o mar. Muita água ficaria no continente, retida nas várias lagoas.

No caso dos dois sistemas em questão, cumpre observar que as nascentes estão muito próximas do mar. No sistema Campelo, elas são baixas e não retêm nuvens sopradas pelos ventos para o interior. Já no sistema Ururaí, as nuvens empurradas para o interior esbarram nos altos contrafortes da Serra do Mar. O resfriamento cumpre o papel de transformar água gasosa em água líquida. Nos dois casos, as calhas dos rios formadores são muito estreitas e os leitos das lagoas são muito rasos.

Cabe uma observação de fundamental importância. No caso do sistema Campelo o trânsito das águas tem mão dupla. Não temos conhecimento de uma cheia restrita ao sistema Campelo. Se ela ocorresse no passado, suas águas fluiriam par o sistema Paraíba do Sul e talvez mais lentamente para o rio Guaxindiba. Já as cheias do rio Paraíba do Sul invadiriam o sistema Campelo retornando, quando da estiagem, ao leito do grande rio.

No caso do sistema Ururaí, a mão é exclusivamente única. As águas transbordadas do sistema Paraíba do Sul pela margem direita dirigem-se para o sistema Ururaí e não mais retornam ao leito do grande rio. Nem mesmo nas cheias extraordinárias do sistema Ururaí, como a de 2008-09, as águas venceram a baixa declividade e alcançaram o Paraíba do Sul. Sequer no rio Preto, ponto em que os dois sistemas mais se aproximam, as águas do Ururaí alcançaram o Paraíba do Sul. Estamos, pois, diante de um divisor de água atípico constituído de um extenso declive.  

Transformações antrópicas

A primeira grande mudança antrópica foi executada no sistema Ururaí. Trata-se da abertura da vala do Furado pelo grande dono de terras José Barcelos Machado, em 1688, para abreviar o escoamento de água doce para o mar. Esse canal começava no ponto em que o rio Iguaçu mais se aproximava da costa. Ele rompia a alta e larga duna da estreita praia e ficava aberto enquanto a água doce acumulada no continente tivesse força para manter a barra da vala franqueada. Atenuado o ímpeto líquido, as correntes marinhas logo tamponavam o furo.

Esse sistema de escoamento perdurou durante os séculos XVII, XVIII e XIX. Deve-se levar em consideração o descomunal desmatamento que começou no século XVII nos tabuleiros da margem esquerda do Paraíba do Sul, onde havia extensas matas estacionais semideciduais que subiam a zona serrana baixa da região. A zona serrana alta da margem direita do rio só começou a ser galgada no século XIX. Os pequenos engenhos, as grandes usinas e as ferroviais devoraram as florestas. Os canais de navegação da Onça, do Nogueira, de Cacimbas e Campos-Macaé permitiram o acesso a sertões bravios, drenando muitas lagoas.  

No final do século XIX e em grande parte do século XX, os engenheiros Marcelino Ramos da Silva, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, José Antonio Martins Romeu e Hildebrando de Araujo Góes concluíram como solução para a drenagem de lagoas e água excedente a abertura de um canal ligando a lagoa Feia ao mar. Primeiramente, foi levada adiante a solução de Marcelino Ramos da Silva, que consistia na abertura do canal de Jagoroaba, cortando a extremidade leste da restinga de Jurubatiba e ligando a lagoa Feia ao mar no ponto em que ambos mais se aproximavam. A experiência resultou em fracasso.

A partir de 1935, com a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e com o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, os três sistemas hídricos foram profundamente alterados. O rio Paraíba do Sul, na planície, ganhou diques de pedra, alvenaria e terra em ambas as margens. Entre a lagoa Feia e o mar, abriu-se o canal da Flecha. Os drenos naturais entre a margem direita do Paraíba do Sul e a margem esquerda do rio Iguaçu foram canalizados e desviados para o canal da Flecha. 

Os rios Imbé e Urubu foram canalizados nos seus estirões finais. O rio Ururaí sofreu canalização entre a rodovia RJ-101 e a lagoa Feia. O rio Macabu também foi retilinizado no seu curso final. No leito da lagoa Feia, abriu-se um canal em forma de tridente ligando o rio Ururaí ao canal da Flecha. Dois outros canais ligavam o canal de tocos e o rio Macabu a esse canal central. A obra não chegou ao fim. A foz do canal da Flecha foi prolongada mar a dentro por dois guias-correntes de pedra extraída do morro do Itaoca.

Na margem esquerda do Paraíba do Sul, o rio da Onça foi desviado para a margem esquerda da lagoa de mesmo nome, desembocando diretamente no rio Muriaé. Este foi endicado em alguns pontos. Os canais naturais ligando as lagoas de sua margem esquerda ao rio foram canalizados. Abriu-se o canal do Vigário para ligar o rio Paraíba do Sul à lagoa do Campelo e vedou-se com comportas a saída do córrego da Cataia na sua ligação com o grande rio. Para estabilizar o nível da lagoa do Campelo, foi aberto o longo canal Engenheiro Antonio Resende, que se aproveitou da foz do rio Guaxindiba no mar. No início desse canal, para promover a estabilização de nível, foi construído um vertedouro.
Transformações antrópicas nos três sistemas hídricos estudados. As áreas desmatadas estão assinaladas com a letra D

Essas obras aumentaram mais ainda a interligação dos três sistemas hídricos, mas acarretaram vários problemas para os três. Elas beneficiaram a agricultura, a pecuária, o desenvolvimento de núcleos urbanos e reduziram drasticamente a atividade pesqueira.

No âmbito do Sistema Paraíba do Sul, ergueram-se os núcleos urbanos de Atafona, Gruçaí, São João da Barra, Campos dos Goytacazes e Guarus, principalmente. Na área do sistema Campelo, o maior núcleo é São Francisco de Itabapoana. No polígono do sistema Ururaí, enumeramos Carapebus, Quissamã, Barra do Furado, Farol de São Thomé, Xexé, Ponta Grossa dos Fidalgos, Ururaí, São Benedito e Morangaba. 

Estudei tais transformações em “A planície do norte do Rio de Janeiro antes e durante a ocidentalização do mundo”. (Rio de Janeiro: Autografia, 2018).     

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