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Do Imbé ao Iguaçu passando pelo Ururaí na cartografia do século XVIII

Por Arthur Soffiati

Cada cultura tem seus métodos de reconhecimento do espaço. Os povos nômades aprendem a conhecer o espaço por meios pragmáticos. Sua economia baseada na coleta, na pesca e na caça requer deles um domínio cognitivo não só do espaço, como também das plantas e dos animais. Os povos já conhecedores da agricultura e da pecuária cultivaram intimidade maior com seu meio próximo, pois já desenvolvem uma vida sedentária. Mesmo assim, as atividades coletoras não cessam de todo, pois são complementares da produção de alimentos. Além do mais, o esgotamento parcial do solo exigia, de tempos em tempos, mudança para outro território, que impunha novos saberes.

As sociedades urbanas costumam representar o espaço em miniatura naquilo que denominamos de mapa. O mais antigo conhecido foi produzido pela civilização mesopotâmica. Outras civilizações também desenvolveram miniaturas gráficas do espaço e roteiros escritos. A civilização greco-romana alcançou elevado patamar nessa arte, embora não tenha sido a única. A construção de impérios por meio da dominação de outros povos exigiu o conhecimento do território. O mapa e o roteiro colocam nas mãos dos governantes e militares o espaço a ser conquistado e dominado.

A expansão marítima da Europa pelo oceano Atlântico exigiu o conhecimento paulatino das áreas dominadas, colonizadas e exploradas. Daí o aprimoramento da cartografia a partir do século XV no mundo europeu. Ter um mapa era como ter o território a ser conhecido e explorado na palma da mão.

No princípio da expansão marítima, os territórios estranhos aos europeus eram representados de longe. Melhor dizendo, do mar, pois ainda havia o risco de encontrar surpresas da natureza e enfrentar hostilidades dos povos nativos. É natural que as representações iniciais da África, América e Ásia contenham imprecisões nas representações iniciais do espaço. Mesmo assim, é de causar forte impressão a cartografia de um Luís Teixeira, por exemplo, um dos maiores cartógrafos de todos os tempos. Deve-se considerar também que mapas, cartas, imagens aéreas, por mais precisas, são sempre representações humanas. Não existe a representação absoluta. Não existe o mapa na escala 1:1.

Toma-se aqui a região norte do Rio de Janeiro para demonstrar como o território foi progressivamente representado em desenhos pelos europeus e europeizados. Já se fez esse exercício com relação à lagoa Feia, ao cabo de São Tomé, ao Baixo dos Pargos e aos rios que drenam a região na cartografia do século XVI. Examina-se agora o complexo fluviolagunar do rio Imbé-lagoa de Cima-rio Ururaí-lagoa Feia-rio Iguaçu. Estes cinco ecossistemas aquáticos formam um conjunto de difícil compreensão. No geral, as descrições não consideram o todo, e sim as partes. Até hoje, poucos estudos acadêmicos abrangem a totalidade do sistema. Depois, então, que ele foi transformado e mutilado por obras humanas, sobretudo no século XX, a compreensão se tornou ainda mais difícil. Daí o interesse em demonstrar pela cartografia como esse sistema tem suas partes descobertas pouco a pouco, sendo representado o seu todo, mas não compreendido como um todo significativo.

No século XVI, como já se explicitou, havia o receio dos povos indígenas, considerados os mais ferozes do mundo. O meio também era hostil ao europeu, pois seus rios não eram facilmente navegáveis, notadamente nas desembocaduras oceânicas. Além do mais, havia outras regiões mais interessantes para o colonizador. Depois da experiência fracassada de Pero de Gois no século XVI, o território ficou praticamente abandonado pelos europeus. Somente na terceira década do século XVII, inicia-se uma colonização contínua da região por meio da pecuária, imediatamente seguida pela agricultura . A região foi mapeada a partir de embarcações que a costeavam. Ilustra-se, como exemplo dessa cartografia, o mapa desenhado por Jan Van Doetechum, que, além dos registros de primeira mão, continha ainda registros de outros cartógrafos . 
Meridionalis Americae (1585), de Jan van Doetechum Rios Manangea (Managé, atual Itabapoana), Paraíba (embora não precedido pela palavra rio), ilha de Santa Clara, cabo de São Tomé, ponta do Salvador, ilha de Mag-he (Macaé) etc.
  
Até o momento, o mais antigo mapa traçado no continente parece datar da segunda metade do século XVII. Ele parece um esboço não concluído que carrega elementos da cartografia do século XVI. As capitanias do Espírito Santo e do Rio de Janeiro (se é que a segunda já existia) estão comprimidas em seus territórios. O centro do mapa é o rio Paraíba do Sul com dois traçados para seu curso, como se o cartógrafo não tivesse ainda certeza se ele vem do norte ou do sul. Pode-se também supor que o mapa tenha sido traçado por informações de outrem, como nos retratos falados da polícia. O registro de uma cachoeira, no limite esquerdo do mapa, indica que o rio Paraíba do Sul já havia sido explorado até o local onde se erguerá São Fidélis, no fim do século XVIII. Ao norte da foz, registrou-se a presença de barreiras vermelhas, informação já presente em várias cartas do século XVI. Trata-se das falésias de tabuleiros existentes entre os rios Itapemirim e Guaxindiba. Ao sul da foz, aparecem o lago da Paraíba, talvez a lagoa Feia deslocada. Mais abaixo, o cabo de São Tomé e a ilha maior do arquipélago de Santana. 

No interior, ao norte do rio Paraíba do Sul, a referência “uitaca”, indicando a nação goitacá, povo dominante na planície. Ao sul do rio, figuram vários montículos que parecem deslocados do norte para o sul, pois que estão localizados na planície, onde não existem elevações significativas. A expressão “campos cheo de gado” indica que a colonização já havia começado, pois a primeira atividade confirmada na planície foi a pecuária. O registro de capelas, uma na altura da atual cidade de Campos e outra nas proximidades da foz do rio Macaé, confirmam a colonização. O sistema hídrico que estamos estudando ainda não aparece neste mapa anônimo que integra o acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro .

Mapa anônimo provavelmente da segunda metade do século XVII. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

No reinado de D. João V (1707-1750), os jesuítas ofereceram ao rei um mapa da Capitania do Rio de Janeiro entre a costa e o Rio Paraíba do Sul. Não apenas os militares se dedicaram à cartografia para fornecer conhecimento aos governos, mas também as ordens religiosas. Dentre elas a dos Jesuítas, que se organizava de forma militar no conhecimento e domínio do território para fins de catequese e de desenvolvimento da economia. A autoria do mapa é atribuída a Domingos Capassi . O original do mapa está bastante desgastado. As cópias digitais acentuam o desgaste. Ele contém poucos registros escritos. A lagoa Feia está nomeada. Ao sul dela, as representações são confusas. Ao norte, aparecem dois rios desembocando na grande lagoa. O rio da direita, deveria ser o Macabu, mas tudo indica que está assinalado como Ururaí. O da direita não foi nomeado. O traçado do rio Iguaçu, engordando na lagoa do Lagamar e continuando até a linha de costa, onde desemboca, não está nomeado. O rio Paraíba do Sul figura bem destacado. A zona serrana, contudo, ainda não devia ser bem conhecida. A convenção para montanhas termina na margem direita do rio Paraíba do Sul. A nascente do rio que desemboca na lagoa Feia pelo lado direito está representada por uma convenção espessa que pode representar uma serra ou uma lagoa. Pode ser tanto a serra do Imbé quanto a lagoa de Cima. As hesitações revelam que o terreno está ainda sendo explorado. Além do mais, num mapa que cobre toda a capitania, as partes não são detalhadas.
O terceiro mapa usado para buscar o sistema hídrico estudado data de 1747 e figura no livro “O homem e o brejo”, de Alberto Ribeiro Lamego, como parte do seu acervo . O conhecimento do território avançou consideravelmente. O mapa é limitado, ao norte, pela Serra do Mar, e, ao sul, pelo oceano Atlântico. Seu estado de conservação ou de reprodução não mais permite que sejam lidas as inscrições ao alto. O cartógrafo desconhecido acompanha a conquista pragmática do colono. Contudo, ainda existem imprecisões notáveis, embora, voltamos a frisar, a cartografia é sempre uma representação, por mais fiel que possa parecer. O cartógrafo anônimo avança mais que a carta atribuída a Domingos Capassi. Não se passou muito da serra antes do século XIX, por medo aos ataques de indígenas. De lá, provém o rio Paraíba do Sul até o mar à direita de quem olha, desembocando nele o rio Muriaé. A sua esquerda, figura a lagoa Feia, que deflui no mar pela vala do Furado, ao sul e pelo rio Iguaçu, bem nítido na carta porque bastante simplificado. A lagoa Feia ocupa o espaço entre os rios Macaé e Paraíba do Sul. Deságuam nela os rios Macabu, proveniente da serra (esquerda) e Ururaí (ao alto) embora nenhum esteja nomeado. A lagoa de Cima, onde nasce o Ururaí, aparece como um pequeno círculo próximo à zona serrana. Parece que o cartógrafo representou o rio Imbé por um curto risco entre a serra e a lagoa.

O mapa cobre quase toda a Capitania do Rio de Janeiro. Na extremidade esquerda figuram a baía de Guanabara e, logo depois, à direita, a região dos Lagos.
O grande monumento cartográfico do século XVIII sobre a capitania do Rio de Janeiro foi traçado pelo o sargento-mor Manoel Vieira Leão, em 1767 . O limite setentrional é representado pelo rio Camapuan, antigo Managé e futuro Itabapoana, divisa com a capitania do Espírito Santo. Abaixo, figura o grande rio Paraíba do Sul com seu afluente Muriaé. Entre os três, aparecem a lagoa do Campelo e a aldeia de Santo Antônio, atual Guarus. Na margem direita do Paraíba do Sul, chama a atenção a grande lagoa Feia. O rio Imbé conta com dois afluentes não nomeados e deságua na lagoa de Cima. O rio que sai dela está ainda assinalado com o nome de Imbé. Em outras palavras, o entendimento do cartógrafo é o de que o Imbé se alarga na lagoa de Cima e sai dela com o mesmo nome. De certa forma, entende-se que o conjunto dos três sistema hídricos forma um só. Ele é tributário da lagoa Feia, que recebe o rio Macabu e tem conexão com as lagoas do Jesus, Coqueiros.

Ao sul da grande lagoa, os rios do Furado, Barro Vermelho e outros não nomeados parecem convergir para o Lagamar, também não nomeado, dando origem ao rio Iguaçu, este sim nomeado e desembocando no mar. Antes, porém, o sistema como um todo recebe dois defluentes do rio Paraíba do Sul e um defluente que acompanha a costa. Trata-se do rio do Veiga, que, na carta de Vieira Leão, alcança o mar ao norte, pela nascente, e ao sul, no ponto em que o rio Iguaçu se lança no mar. A barra do Furado já está assinalada e todo o sistema hídrico que estamos estudando aparece na sua integralidade com nomes distintos: rio Imbé-lagoa de Cima-rio Imbé-lagoa Feia-rio Iguaçu. A clareza desse rio é grande, pois ainda não existia o canal da Flecha, que vai seccioná-lo em dois. A barra do Canzoza correspondia à desembocadura do rio Iguaçu no mar. No mapa, ela se localiza mais ao norte, como se o rio se estendesse ao rio ou lagoa do Veiga e desembocasse no mar pela nascente desse, algo que só poderia ocorrer por meio de impactante intervenção antrópica.
Não se sabe se a carta do sargento-mor Manoel Vieira Leão influenciou a “Carta corográfica da capitania do Rio de Janeiro capital do Estado do Brasil”, levantada por Francisco João Roscio, 1777 . Ela não é mais aprimorada que a de Vieira Leão, mas pressupõe trabalho cartográfico anterior. Como no trabalho do sargento-mor, o limite alcançado ao norte é o rio Cabapuam, atual Itabapoana. À esquerda deste rio está assinalada a Serra do Mar, embora não nomeada. Entre ela e o Cabapuam, fica o rio Muriaé e a seu lado, na margem esquerda do Paraíba do Sul, está a lagoa do Campelo. Na margem direita do Paraíba do Sul, entre a Serra do Mar e a linha de costa,  figura o rio Preto. Entre ele e a costa, aparece em sua plenitude o sistema hídrico estudado aqui: o rio Imbé desembocando na lagoa de Cima e vertendo pela outra extremidade dela ainda com o nome de Imbé, como se a lagoa de Cima fosse apenas um engordamento do rio. A grande lagoa Feia é seu receptáculo, tanto quanto para o rio Macabu. Tanto no mapa de Vieira Leão quanto neste, de Francisco João Roscio, não há qualquer vestígio da localidade de Ururaí, nem mesmo o engenho do Cupim, que dará origem ao povoado. Continuar a descrever o sistema por este mapa seria repetir a descrição do mapa de Viera Leão, tamanhas são as semelhanças entre ambos, o que nos leva a supor seja ele quase uma cópia. A ideia de plágio ainda não existia, e não haveria problema em copiar a carta de Vieira Leão creditando-a a outro autor. Além do mais, as mudanças foram mínimas nos dez anos entre 1767 e 1777.
O distrito dos Campos Goitacás, parte da capitania do Rio de Janeiro e hoje correspondente às regiões norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro, ganhará um cartógrafo da mais alta competência na figura do capitão de infantaria Manoel Martins do Couto Reis. Em 1783, ele foi designado pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza para levantar uma planta do distrito. Para explicá-la, ele escreveu um detalhado relatório, hoje considerado um documento monumental para os historiadores, pois o cartógrafo trata dos tipos de terreno, do relevo, dos rios e lagoas, da vegetação e da fauna nativas, da economia, dos proprietários rurais, dos escravos e dos povos indígenas 

Nesse precioso relatório de 1785, Couto Reis descreve cada parte do sistema em estudo com desenhos e palavras. O mapa é tão minucioso que o sistema estudado não pode ser mostrado de uma só vez na sua totalidade sob pena de se perder os detalhes. No primeiro segmento do sistema, mostramos o rio Imbé desembocando na lagoa de Cima e vertendo pelo rio Ururaí e não mais pelo rio Imbé, como se ele fosse uma continuação do primeiro. Na verdade, é, mas ganha outro nome. O Ururaí desemboca na lagoa Feia. Aparecem também as lagoas do Cacumanga, da Piabanha e do Jesus, hoje extintas. Há os nomes dos muitos proprietários de terra. 

Nas cabeceiras do rio Imbé, está assinalada a Serra das Almas, antigo nome da Serra do Imbé, nome local da Serra do Mar. O rio formava lagoas, como acontecia com outros cursos d’água da planície. Mas o Imbé tem seu leito na zona serrana baixa, correndo no sopé da Serra do Mar. Nesse mapa, sua desembocadura na lagoa de Cima se bifurca e recebe os nomes de Imbé e Morto. É muito comum designar como morto os rios inativos. A informação é importante porque, no século XX, a desembocadura do Imbé será transferida, na lagoa de Cima, de um local para outro. Logo abaixo, figura um pequeno rio sem nome, correspondendo ao curso atualmente conhecido como Urubu. Essa parte do rio, no século XVIII, era ainda coberta de vastas florestas úmidas que impediram Couto Reis de explorá-la. Havia ainda o medo dos índios.

Logo após a nascente do rio Ururaí na lagoa Feia, ele recebe um afluente pela margem esquerda não nomeado. Deve ser o rio Preto. Aparece outro bastante pequeno pela margem direita do qual não temos notícia. As localidades de Ururaí e Tapera ainda não existem. Por isso não estão assinaladas na minuciosa carta de Couto Reis.
A segunda parte do sistema hídrico abrange a lagoa Feia e o complexo rio Iguaçu. Além do rio Ururaí, a lagoa Feia recebe também as águas do rio Macabu, à esquerda, e escoa ao sul por um emaranhado de canais. Um vai se unindo a outro e formando uma teia que converge para a lagoa do Lagamar. A Barra do Furado, aberta em 1688, figura com clareza no mapa de Couto Reis. A partir do Lagamar, o sistema adquire o nome de rio Iguaçu e alcança o mar, recebendo antes as águas do rio do Veiga. Numa planície complexa como a do rio Paraíba do Sul, aparecem defluentes que saem deste e desembocam no rio Iguaçu. Os mais importantes são o Grande Canal ou Cula e o rio Água Preta.
No conjunto, mostramos todo o sistema, colorido de azul.

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