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Memórias de Gruçaí III: águas

  Por Arthur Soffiati  

Valho-me do balneário de Gruçaí (que sempre escrevo à moda antiga, com ç) para falar da restinga sobre a qual ele se ergueu. Impossível entender a localidade sem o seu contexto geológico, hidrográfico, biológico e sociológico. A restinga de Gruçaí não se restringe à Avenida da Liberdade. Ela é a maior do estado do Rio de Janeiro e se formou há menos de dois mil anos. Em termos geológicos, é um tempo muito breve. Pelos processos erosivos que se percebem na foz do Paraíba do Sul e na praia do Açu, ela continua em formação.

Como já vimos, o mar avançou sobre um antigo continente e chegou ao ponto mais alto em 5.100 antes do presente, atingindo a lagoa de Cima. Depois, o mar foi recuando lentamente, enquanto o rio Paraíba do Sul avançava, formando a planície fluvial com sedimentos transportados das partes altas e a restinga, retendo areia de um lado e de outro. O leitor interessado já deve ter notado valas rasas na restinga paralelas à linha da praia. O mar não recuou rapidamente e de uma só vez. À medida que regredia, ele ia deixando sua marca. Os pontos altos dessas valas são antigas praias.

A linha em vermelho marca os limites da restinga. A linha pontilhada assinala a costa atual

E muita água ficou aprisionada nesse processo. Em princípio, água salgada, que foi se tornando doce com as chuvas. Essa água ficou retida em lagoas, brejos, banhados, córregos etc. Na parte da restinga que se formou na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, as lagoas e brejos tendem a apresentar formação paralela à praia. Basta examinar a feição da lagoa do Campelo, do brejo de Cacimbas, dos brejos dos Cocos, dos Faria, do Mangue Seco e das lagoas do Comércio, do Meio e da Praia.

Na margem direita, onde fica Gruçaí, as lagoas e brejos tendem também a se dispor paralelamente à praia, mas buscando chegar ao mar, como as lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu. Devemos levar em consideração dois aspectos importantes da restinga na margem direita do Paraíba do Sul: 1- a corrente do mar predominante, que se desloca de norte para sul. Examinem o mapa abaixo e percebam como a restinga é maior e mais consistente na margem esquerda. Notem também que, nesse trecho, só existe um processo erosivo significativo em Guaxindiba. O jato do rio, por mais fraco que esteja na atualidade, retém areia na margem esquerda. 2- A restinga na margem direita do rio é ligeiramente mais baixa que seu nível médio. Ainda hoje, quando o rio transborda pela margem esquerda, cessada a enchente, as água costuma voltar ao rio. Pela margem direita, as águas de transbordamento descem pelo plano inclinado da restinga e não voltam mais ao rio.

Legenda: 1- lagoa do Campelo; 2- Brejo de Cacimbas; 3- Brejo dos Cocos; 4- Brejo dos Faria; 5- Brejo Mangue Seco; 6- Lagoa do Comércio; 7- Valão Paraíba do Sul - lagoa de Gruçaí; 8- Lagoa de Gruçaí; 9- Lagoa de Iquipari

Pela margem direita, as águas de transbordamento desciam pelo rio Água Preta ou Doce (hoje transformado no canal do Quitingute), entravam nas lagoas de Gruçaí e Iquipari alcançando o rio Iguaçu, hoje transformado na lagoa do Açu. Entre o rio Paraíba do Sul e a lagoa de Gruçaí, existia uma ligação natural bastante conhecida dos antigos, que a chamavam de valão. Ainda conheço pessoas que passaram a sua infância e adolescência pescando nesse valão. Havia pontes de madeira sobre ele para a passagem de carros.

Onde está o valão? Ainda é possível encontrar fragmentos dele. Em Atafona, ele é usado como ancoradouro para barcos que entram ou saem do rio. Que o leitor tome esse ponto em Atafona para descobrir o seu curso, como o autor dessas linhas já fez. Ele está todo recortado por propriedades rurais e por casas. O SESC Mineiro aterrou grande trecho dele. Em tempos normais, as águas do Paraíba do Sul corriam dele para a lagoa de Gruçaí. A estrada asfaltada bloqueou seu fluxo sem qualquer passagem sob ela. Já aconteceu de chuvas e enchentes inundarem seus fragmentos e invadirem a pista. Para que isso não aconteça, a prefeitura de São João da Barra amontoa areia nas margens da estrada como se fossem diques para conter as águas. Mas elas empurram essa areia para o meio da pista causando acidentes. Um deles causou morte.

Para quem vive hoje sem se interessar pelo ontem e pelo amanhã, entende o delta do Paraíba do Sul formado apenas pelos braços de Atafona e Gargaú. No passado, ele era muito mais amplo e acionado em tempos de cheias. Descendo pelo rio Água Preta, as águas saíam também pela lagoa de Gruçaí, pelo lagoa de Iquipari e pela lagoa do Açu. O grande delta era então ativado.

Antigo delta do Paraíba do Sul em mapa de Alberto Ribeiro Lamego: 1- braço de Atafona; 2- braço de Gargaú; 3- valão Paraíba-Gruçaí; 4- canal auxiliar; 5- rio Água Preta; 6- lagoa de Gruçaí; 7- lagoa de Iquipari; 8- Açu

Esse mundo começou a acabar em 1940, com obras de drenagem do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), extinto em 1990. Era um ambiente em que dominavam a areia, as lagoas, os brejos, a vegetação nativa e os animais silvestres. O povoador da restinga depois da chegada do europeu ligava-se à atividade pesqueira. Era conhecido como muxuango. A urbanização era reduzida.

O acesso aos povoados era feito pela ferrovia Campos-Atafona e por estradas de terra batida. Detalharemos esse tempo nos próximos artigos.

Sugestão de leituras

  • LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a restinga. Rio de Janeiro: Lidador, 1974.
  • LAMEGO, Alberto Ribeiro. Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa
  • Feia e Xexé. Boletim nº 154 da Divisão de Geologia e Mineralogia. Rio de Janeiro:
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1955.
  • LAMEGO, Alberto Ribeiro. Restingas na costa do Brasil. Boletim nº 96. Rio de
  • Janeiro: Ministério da Agricultura/Departamento Nacional da Produção
  • Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1940.
  • MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M.L. e FLEXOR, Jean-Marie.
  • Geologia do Quaternário costeiro do litoral norte do Rio de Janeiro e do Espírito
  • Santo. Belo Horizonte: CPRM, 1997.
  • MUSSI-DIAS, Vicente, FREIRE, Maria das Graças Machado, SOFFIATI, Arthur.
  • Restinga paralela. Campos dos Goytacazes: M.G.M. Freire.2021 (pode ser baixado
  • gratuitamente na Internet).
  • SOFFIATI, Arthur. A planície do norte do Rio de Janeiro antes e durante a
  • ocidentalização do mundo: três estudos de eco-história. Rio de Janeiro: Autografia,
  • 2018.
  • SOFFIATI, Arthur. As saídas de água continental para o mar na Ecorregião de São
  • Tomé. Portal do Farol de São Thomé, Campos dos Goytacazes, 16 de Agosto de 2017.

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