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Memórias de Gruçaí: a restinga


Arthur Soffiati

Para o senso comum, memória é uma faculdade restrita ao ser humano. Todos nós temos memória. Ela é mais viva quando somos jovens. Enfraquece com a idade. A maioria das pessoas não mobiliza sua memória de forma organizada, como fazem alguns escritores, que redigem as suas memórias ou aceitam que outras pessoas as organizem. Geralmente, são pessoas que deram alguma contribuição significativa à sociedade.

Mas a memória pode ser entendida de maneira ampla. As pedras, as águas, as plantas e os animais têm memória. Fala-se na memória prodigiosa do elefante. Mas sabemos que um cachorro e um gato guardam na memória o que lhes é familiar. Depois de anos, eles são capazes de reconhecer o “dono”. Nas rochas, existe a memória de tempos passados. Nas plantas e animais, existe memória de sua caminhada evolutiva. Não sem razão, afirma-se que uma criança em gestação passa pelas fases de peixe, anfíbio, réptil e ave até adquirir a forma de mamífero. A ontogenia recapitula a filogenia. É um princípio científico.

A restinga sobre a qual se ergueu Gruçaí também tem memória. Mas é preciso treino e conhecimento para perceber as informações emitidas por ela. Desde que comecei a veranear em Gruçaí, é comum as pessoas chamarem de restinga a estrada principal do lugar, atual avenida da Liberdade. Restinga é muito mais. É uma grande porção de areia formada pelo transporte de sedimentos arenosos pelo mar e retidos por algum obstáculo.

No estudo “As restingas na costa do Brasil” (Boletim nº 96. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Departamento Nacional da Produção Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1940),  Alberto Ribeiro Lamego explica que uma restinga se forma quando grãos de areia transportados por correntes marinhas são retidos por um obstáculo pedregoso, como no caso das restingas da Região dos Lagos. Mas, no caso da costa entre os rios Itapemirim (ES) e Macaé (RJ), não existem obstáculos pedregosos que retenham areia e formem uma restinga. Como, então, formou-se a grande restinga sobre a qual ergueu-se Gruçaí? Um rio que desemboca no mar pode promover a retenção de areia. Foi esse o papel do rio Paraíba do Sul. Quem olha para sua foz hoje não imagina o vigor que ele apresentou num passado não muito distante. Hoje, o mar está vencendo o rio e invadindo seu trecho final. Essa invasão saliniza a água doce e compromete o tratamento da água para abastecimento humano. Pode comprometer também a água usada para irrigação e dessedentação de animais. Tem sido cada vez mais comum a força do mar bloquear o braço principal da foz em tempos de estiagem.

Braço principal do rio Paraíba do Sul, em Atafona, bloqueado pelo mar

Há cerca de 5 mil anos, o jato do Paraíba do Sul era bastante forte e interferiu na corrente marinha principal, que se desloca de norte para sul, retendo areia em ambas as margens e formando a maior restinga do estado do Rio de Janeiro. Exatamente no ponto em que hoje se localiza Gruçaí, a corrente vinda do norte encontra-se com uma corrente vinda do sul e acumula areia. Nesse ponto, a praia engorda. Eis aí a memória da natureza. Note-se que, na margem esquerda do Paraíba do Sul, a areia vinda do norte se acumulou mais do que na margem direita, no ponto em que hoje existe Atafona. É comum o desenvolvimento de manguezais na foz de rios que desembocam no mar na zona intertropical. Acima e abaixo dos trópicos, os manguezais desaparecem progressivamente por serem um ecossistema exclusivamente tropical e estuarino. Estuário é o ambiente que se forma no encontro da água doce com a água salgada.

Por que o manguezal da foz do Paraíba do Sul é menor na margem direita? Porque nela o efeito da erosão marinha é mais forte, soterrando as plantas. A construção da restinga na margem esquerda e sua destruição na margem direita existem desde que a restinga se formou. Entretanto, ela está cada vez mais acentuada pelas intervenções feitas ao longo do Paraíba e de seus afluentes, como o desmatamento, as barragens e a transposição de 2/3 de seu volume para o rio Guandu, a fim de abastecer o Grande Rio. Considere-se também que o mar está mais violento, com seu nível subindo pelas mudanças climáticas, que derretem geleiras. 

A grande restinga em que se ergueu Gruçaí bem podia ser chamada de Restinga de Paraíba do Sul, em homenagem ao rio que a formou. Como ela não tem nome oficial, eu a batizei com o nome do sofrido rio. A rigor, ela se estende do rio Guaxindiba ao rio Iguaçu. Este não existe mais. O que restou dele foi a comprida lagoa do Açu. Mais uma vez estamos lidando com a memória da natureza. Houve tão profundas intervenções humanas no rio Iguaçu que ele se transformou numa lagoa alongada. A partir da barra do Açu, a faixa costeira de areia se torna estreita por 28 quilômetros até a restinga de Jurubatiba. Sobre essa faixa, formaram-se as localidades de Xexé e Farol de São Tomé. Depois de Barra do Furado, a natureza construiu outra restinga, que se estende até a margem esquerda do rio Macaé. Trata-se da restinga conhecida pelo nome de Jurubatiba e que se formou em torno de 120 mil anos antes do presente. Examinaremos, no próximo capítulo, as teorias sobre a formação da restinga de Paraíba do Sul.

No mapa, as duas áreas em verde são restingas. A de número 1 é a restinga de Jurubatiba e a de número 2 é a de Paraíba 


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