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Da lagoa da Onça a Muritiba passado por Guarus: uma viagem ao passado (II)

Por Arthur Soffiati

Vivemos um momento de redescoberta da natureza. Não de um retorno às relações íntimas que os povos indígenas mantinham com ela, mas do reconhecimento de que ela é de suma importante para a vida da humanidade. Precisamos olhar mais para o relevo, o tipo de solo, os rios e a vegetação nativa. Nas margens dos rios Paraíba do Sul e Muriaé, em seu curso final, existem três tipos de terreno com idades diferentes. Descendo da antiga zona serrana, pisamos os tabuleiros da margem esquerda de ambos os rios. Eles se estendem do Paraíba do Sul ao Itapemirim, no Espírito Santo, e datam de 5 milhões de anos. A vegetação nativa original que os recobria era a mata estacional semidecidual, que perde de 20 a 50% na estação seca. Um mapa de 1747, desenhado por autor desconhecido, assinala esse tipo de floresta na margem esquerda de um rio Paraíba do Sul descendo de norte para sul. Dela, restaram algumas manchas, sendo a maior aquela protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba, em São Francisco de Itabapoana.

Na margem direita do Paraíba do Sul, o rio formou uma vasta planície aluvial com sedimentos transportados tanto da serra quanto dos tabuleiros. Sua idade é estimada em cinco mil anos. A vegetação que a recobria era rala por conta do excesso de água. Próximo à foz, o rio e o mar formaram uma extensa restinga com cerca de 2.500 anos. A vegetação, ali, pode alcançar o porte de floresta no interior, ainda que crescendo em substrato arenoso. Perto do mar, sua estatura se reduz por causa dos fortes ventos e da salinidade presente no ar. Das matas de restinga também pouco restou pelo desmatamento sistemático.
Mapa anônimo de 1747, mostrando a Serra do Mar (ao fundo), o rio Paraíba do Sul (em primeiro plano), o rio Muriaé (à direita) e as matas estacionais semideciduais do Sertão de Cacimbas

Vinte anos depois do mapa anônimo, o Sargento-Mor Manuel Viera Leão cartografou toda a Capitania do Rio de Janeiro de forma primorosa para a época. Seu trabalho de reconhecimento representa um marco na cartografia. Com relação à margem esquerda do Paraíba do Sul, o destaque recai sobre a lagoa do Campelo, tão importante no setor norte da restinga quanto a lagoa Feia é importante na margem direita. Mas Vieira Leão só assinala o rio Camapuam (Itabapoana) e a Ponta de Manguinhos, sem indicar o tipo de vegetação e a freguesia de Santo Antônio de Guarulhos.
Carta topográfica do Rio de Janeiro mostrando a margem esquerda do Paraíba do Sul em seu trecho final – Manuel Vieira Leão - 1767

Em 1777, Francisco João Roscio produz um mapa que parece copiado de Vieira Leão, nada acrescentando sobre a margem esquerda do Paraíba do Sul.
Parte do mapa de Francisco João Roscio relativa à margem esquerda do rio Paraíba do Sul - 1777

No seu alentado relatório de 1785, Manoel Martins do Couto Reis, militar da infantaria e cartógrafo, informa que o Distrito de Campos dos Goytacazes contava com duas vilas e seis freguesias. As vilas eram Campos e São João da Barra. Macaé não foi incluída porque, na época, a administração da justiça no Distrito estava por conta da Ouvidoria do Espírito Santo, estendendo-se até a margem esquerda do rio Macaé. As freguesias eram São Salvador, São João, Santo Antônio, São Gonçalo, Capivari e Nossa Senhora das Neves. 

Como estamos enfocando a margem esquerda do Paraíba do Sul e do Muriaé, cabe-nos dar notícia da Freguesia de Santo Antônio, também denominada Santo Antônio de Guarulhos e hoje apenas Guarus. Couto reis escreveu que ela era a “quarta em antiguidade, está situada sobre a barranca boreal do Paraíba com grandiosa extensão de terreno na sua jurisdição, cujos termos para o norte e oeste se ignora por não estarem demarcados; ainda tem pouco povo, mas a maior parte dele bem estabelecido com engenhos de açúcar e outras lavouras: tem dentro dos seus limites uma capela filial do Divino Espírito Santo.”

Como vantagens da freguesia, Couto Reis aponta a excelente navegação nos rios Paraíba do Sul e Muriaé. A fertilidade da terra também é registrada por ele como própria a todos os gêneros de plantas. O terreno é ondulado, com partes baixas e planas e partes elevadas. Nas planas, havia muitas terras alagadas e alagáveis, que ele anota como brejais. Ele está aqui identificando a caraterística primeira dos tabuleiros: a ondulação. Na margem direita, onde se instalou a vila de Campos, o terreno é somente plano. Atravessando o rio Paraíba do Sul da margem direita para a esquerda, deixa-se a planície e alcançam-se os tabuleiros. O cartógrafo anotou a presença de pedras adequadas para construções, mas elas não existem nos tabuleiros. A menos que ele esteja se referindo aos terrenos pedregosos do morro da Onça ou do sertão da Pedra Lisa, ao norte de Santo Antônio e integrantes da freguesia. A grande vantagem que ele aponta são as abundantes florestas, que podem fornecer madeira de árvores diversas. Embora entendendo que o desmatamento não devia ser feito de forma indiscriminada, o militar, em sintonia com seu tempo, entende que a corte de árvores e a drenagem de brejos abrem espaço para a civilização.

Sobre os defeitos que ele percebeu na freguesia, estão, em primeiro lugar, as doenças epidêmicas, que dificultam o seu progresso. De fato, as epidemias resultam de doenças endêmicas tanto na margem esquerda do Paraíba do Sul quanto na do Muriaé. Na época, essas endemias eram atribuídas às emanações mefíticas dos brejos, quando, na verdade, derivavam de águas represadas e sem peixes para comer os mosquitos transmissores de morbidades ou a outros transmissores, como a pulga, por exemplo.
Parte do mapa de Manoel Martins do Couto Reis relativa à margem esquerda do rio Paraíba do Sul - 1785
No artigo anterior acompanhamos Couto Reis na sua subida no rio Muriaé até o morro da Onça. Na verdade, concentramos as atenções no trecho das margens esquerdas entre Santo Antônio de Guarulhos e a lagoa da Onça, não apenas acompanhando os passos do capitão cartógrafo, mas também de outros autores. Observamos, nesse trecho, que a lagoa das Pedras e o canal do Jacaré, que a liga ao Muriaé, já eram bastante conhecidos. Já existia uma estrada principal de terra entre Guarulhos e a lagoa da Onça, saindo dela uma estrada secundária para o interior na altura de Guarulhos. E ao sul da sede da Freguesia? Couto Reis fornece as primeiras informações mais detalhadas do trecho que se estende de Guarulhos ao rio Cabapuana (Itabapoana), passando por Muritiba e pelo rio Guaxindiba.  

Do ponto em que o córrego do Cula começava na margem direita do rio Paraíba do Sul em direção à baixada de restinga, sigamos os passos de Couto Reis na margem esquerda do mesmo rio rumo ao sul. O cartógrafo registra em seu minucioso o mapa áreas embrejadas e a lagoa do Campelo ligada ao Paraíba do Sul por um canal natural. Ela já era bem conhecida e uma verdadeira referência na margem esquerda. Tudo leva a crer que a ligação com o rio seria feita, como ainda hoje, pelo córrego da Cataia. Mas há outro canal mais ao norte que se conecta com o Cataia e chega ao grande rio. Tudo indica ser o valão da Ponte, hoje desativado. 

A convenção usada no mapa indica que todo o entorno da lagoa do Campelo era embrejada. Ainda não se sabia que a margem esquerda do rio Paraíba do Sul, da foz do rio Muriaé ao estuário do grande rio da planície dos goitacás, é ligeiramente mais alta que o nível médio do rio e que, nas cheias, suas águas galgavam essa margem até a lagoa do Campelo. Nas estiagens, parte da água retornava ao leito do rio e outra parte ficava retida em concavidades. Pouco abaixo da lagoa do Campelo, ele registra a lagoa das Freiras e Frecheiras. Em seguida, os amplos e inundáveis Campo Novos de São Lourenço. No meio dele, a ilha Grande, a Lagoinha, Poços, ilha do Engenho Largo, paço do Melimba, um atoleiro e valeta Porto Velho.
 Aspecto da Mata Estacional Semidecidual na estação seca

Para o interior, Poço d’Areia, Terra Nova, Genipabu e Muritiba. Este último, ainda hoje, grande ponto de referência. Mais para o interior, o brejo do Peixe e as restingas do Aipo e das Velhas. Caminhando cada vez mais em direção ao antigo Sertão de São João da Barra, aparecem a lagoa do Silva, o brejo da Casa Velha, o curral Falso, as lagoas da Saudade e do Saco. Chegamos à foz do Paraíba do Sul, dividida em dois braços: o de Atafona e o de Gargaú, já com esses nomes. Subindo a costa na margem esquerda do rio, encontramos Gamboa e Curralinho. No arco costeiro hoje correspondentes às praias de Santa Clara e Sossego, o cartógrafo anota: “Entrada do Sertão. Neste lugar se fez antigamente uma grande corveta depois com muita facilidade se lançou ao mar.”

Chegamos à Ponta de Guaxindiba, onde está assinalado o pequeno rio de mesmo nome. Rumo ao norte, atingimos a Ponta de Manguinhos, a praia da (nome ilegível), a praia de Maria Buena, a praia Comprida, a Entrada do Retiro, a Ponta do Retiro, o baixo Salgado, lagoa Doce e Gamboa Santa Catarina. Couto Reis esteve examinando os restos da Vila da Rainha, primeira iniciativa de fundar uma colônia europeia na Capitania de São Tomé por seu donatário Pero de Gois, entre 1539 e 1546. Tudo indica que, depois desse fracasso, seu filho Gil de Gois, associado a Pero Leitão, tentou fundar um outro núcleo na margem direita do rio Itapemirim com o nome de Santa Catarina das Mós. Tanto a vila da Rainha como a de Santa Catarina homenageiam a rainha de Portugal, D. Catarina. Correndo o percurso de Couto Reis, chegamos à foz do rio Itabapoana, grafado como Cabapuana. Ele tem uma grande entrada ao sul e chega ao mar.

Toda essa área entre o Paraíba do Sul e o Itabapoana recebia o nome de Sertão das Cacimbas. O nome foi aplicado ao grande brejo das Cacimbas, onde foi aberto, nos anos de 1830, o canal de Cacimbas. Ainda hoje, o antigo Sertão de São João da Barra, agora município de São Francisco de Itabapoana, é conhecido como Sertão das Cacimbas. A denominação vem sendo esquecida. Couto Reis mistura as convenções para brejos e árvores. De fato, parte da área era alagada ou alagável, enquanto a outra parte era coberta por vegetação de restinga e de mata estacional semidecidual.
 Aspecto de mata de restinga arbórea

Também ao sul de Santo Antônio de Guarulhos, havia uma estrada, que Couto Reis assinala em vermelho, até Muritiba, onde fazia a curva para o leste se seguia até a bacia do rio Guaxindiba. Dela, partiam duas ramificações antes da lagoa do Campelo. Outra chegava à lagoa. Abaixo desta, uma rede de estradas se reunia numa só que alcançava a ponta leste da lagoa. Na altura da ilha do Engenho Largo, a estrada principal se ramificava em duas, chegando uma ao litoral e encontrando com uma estrada costeira que começava na ilha da Convivência (não nomeada no mapa). A presença da estrada indicaria que ela já seria povoada? Essa estrada costeira se estende até o rio Guaxindiba. Havia, portanto, duas estradas de terra paralelas: uma na costa e outra no interior. Esta terminava no sítio de Pedro Dias dos Santos.
 Mó de um engenho da Vila da Rainha, hoje no Museu do Açúcar, em Recife

Couto Reis devia indagar sobre os nomes dos proprietários de terra ao longo dessas estradas, já que, em seu tempo, não havia registro de posse. Os limites entre uma fazenda e outra deviam ser convencionados pelos donos. É de admirar que terras alagáveis e alagadas tivessem proprietário. De Santo Antônio de Guarulhos ao brejo do Espiador, Couto Reis anota os seguintes nomes: Manoel João F. Ribeiro, Alberto Ferreira, J. Caetano e Cia, Paulo Barreto, Eugenio Ferreira, Manoel e Cia, Jeroniano da Costa, J. Velho Pinto, João S. Rangel, Anna Dias, Francisco Jorge, Sebastiana Almeida, D. Anna Maria Maia, Manoel Rodrigues Pinto, Capitão-mor Belmonte Rangel, Maria das Neves, Antonio Francisco, Joaquim Gomes, Vicente Ferreira, Manoel Ferreira, Sargento-mor Gregorio Francisco, Maria do Nascimento (na margem oeste da lagoa do Campelo) e Antonio (ilegível).

Essa é a zona mais ocupada por propriedades rurais na margem esquerda do rio Paraíba do Sul em seu trecho final. Daí em diante, Couto Reis só registra o sítio de Pedro Dias dos Santos, na bacia do rio Guaxindiba. Por mais meticuloso que fosse o cartógrafo, ele pode não ter registrado propriedades rurais depois de Muritiba. Seja como for, a existência de muitas propriedades na margem esquerda do rio Paraíba do Sul em terras de restinga alagada e alagável era problemática, pois ainda não havia um dique protetor nem redes de drenagem como os canais que conhecemos hoje. Pode-se concluir, então, que não importava tanto a produtividade e a produção da terra, mas sim a sua posse, pois ela conferia poder ao seu dono. 

Essa foi a herança que a legislação colonial nos deixou: o que conta não é produzir, mas possuir. Quem possui tem mais poder de receber terras de quem não possui, como era o caso das sesmarias. 

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