News

6/recent/ticker-posts

Paleolítico e neolítico entre os rios Macaé e Itapemirim

Por Arthur Soffiati
Paleolítico no velho mundo

Aprendemos nos livros didáticos que a humanidade viveu a maior parte da sua história no paleolítico. Considerando apenas o “Homo sapiens”, a mais nova espécie hominídea, teríamos vivido no paleolítico durante cerca de 200.000 anos. Se remontarmos ao nosso ancestral imediato, “Homo neanderthalensis”, recuaríamos a pelo menos 800.000 anos. Os primeiros sepultamentos estão associados a essa espécie, sinal de que o neandertal já acreditava em algo mais para além do mundo terreno. Recuando ainda mais, até o “Homo erectus”, a história hominídea teria 1.000.000 de anos, pois as técnicas de produção do fogo foram criadas por ele. A produção do fogo representou uma revolução técnica de grande alcance. Nem mesmo os mais avançados primatas, como chimpanzés, bonobos e gorilas, conseguem produzir fogo. Num mergulho ainda maior, alcançaremos o “Homo habilis”, há 1.450.000 de anos, a primeira espécie hominídea a usar ferramentas.  

O entendimento que se tem hoje do “Homo sapiens”, a espécie da qual fazemos parte, é o de que ele carrega em seu genoma uma mistura de sapiens, neandertal e Homo de Denisova, do qual só conhecemos o osso do dedo, dois dentes, um osso do pé e uma queixada. Com esse material, foi possível obter informações genéticas que estão presentes no sapiens. Além do mais, espécies paralelas, como o “Homo floresiensis” e o provisoriamente batizado “Homo luzonensis”, ambas as espécies com pés adaptados à vida arborícula ou semiarborícola. E no código genético do sapiens foi encontrado agora o fantasma de uma espécie cujos restos materiais não foram identificados.

Os especialistas dividem o paleolítico em três fases: inferior, médio e superior. A história humana começa com o uso ou a fabricação de ferramentas rústicas a partir da madeira, do osso, da pedra e de outros materiais, passando pela produção do fogo, da sepultura e da arte. Como a pedra é o material mais resistente, foram as ferramentas fabricadas com ela as que mais resistiram à ação do tempo. Daí, o nome de paleolítico, que significa “pedra antiga”. Nesse longo período de, no máximo 1.450.000 anos, por enquanto, os grupos sociais só conseguiram desenvolver a técnica de lascar a pedra, não de poli-la. Como eles só sabiam obter alimentos já produzidos pela natureza, seu modo de vida era nômade, pois era preciso colher, pescar e caçar, atividades que exigem movimento. Em resumo, o paleolítico é entendido como o maior período da história da humanidade em que os grupos sociais eram nômades pela necessidade de procurar alimento. 

Obtenção de alimento na naturez e nomadismo, eis a síntese que chegou até nós. A humanidade viveu a maior parte da sua história distribuída em pequenos grupos sociais que coletavam, pescavam e caçavam, tendo que, para isso, deslocar-se com bastante frequência. Foi o que as pequisas no hemisfério norte nos ensinaram sobre o paleolítico. 
Arte do paleolítico no hemisfério norte

Neolitico no velho mundo

O paleolítico desenrolou-se durante a época geológica do Pleistoceno, marcada por glaciações e períodos integrlaciais. Foram quatro glaciações. Tanto elas quanto os períodos integlaciais representaram desafios aos hominídeos. Estamos vivendo o quarto período integlacial. O fim da última glaciação, há 11.700 anos, representou um desafio para o “Homo sapiens”, vivendo até então em grupos paleolíticos. Parece que seu cérebro já havia desenvolvido complexidade suficiente para dar respostas mais complexas que aquelas dadas nos quatro períodos glaciais e três interglaciais. Agora, alguns grupos paleolíticos enfrentaram o novo aquecimento global natural domesticando plantas e animais e inventando, assim, a agricultura e o pastoreio. As sociedades que deram essa resposta criativa puderam adotar vida sedentária, pois o alimento era cultivado em lugares fixos, onde foram erguidas aldeias. 

A sedentarização permitida pela agricultura e pelo pastoreio foi o primeiro passo para a divisão territorial e social do trabalho, ao lado da divisão sexual e técnica, que já existia. Com a sedentarização, foi possível dispor de tempo para inventar a cestaria, a cerâmica (que se supõe derivar de cestas cobertas de argila), a tecelagem, a metalurgia, a roda etc. Esse novo tipo de sociedade podia se deslocar depois de esgotado o solo, em busca de terras virgens a fim de novamente aproveitá-las para cultivo e pastagem.

A base das primeiras civilizações, que floresceram na Mesopotâmia e no baixo rio Nilo, situa-se nas sociedades neolíticas. Nem todas elas desembocaram em civilizações, assim como nem todas as sociedades paleolíticas tornaram-se neolíticas. Ainda hoje, encontramos sociedades paleolíticas, sendo a mais pura aquela que tem por base territorial a ilha Sentinela Norte, no litoral indiano. Existem ainda algumas na Amazônia, assim como algumas neolíticas não avançaram para a condição de civilizações. 
Cerâmica neolítica no hemisfério norte

Entretanto, com a globalização do mundo pela civilização ocidental nos últimos 600 anos, parece que os remanescentes paleolíticos e neolíticos estão fadados ao desaparecimento.

Paleolítico americano

As Américas do Norte e do Sul foram os últimos continentes colonizados pelos hominídoeos. Eles chegaram na forma de “Homo sapiens”, embora, recentemente, tenha-se aventado a possibilidade de o “Homo neandethalensis” ter alcançado terras americanas primeiramente. As hipóteses sobre a migração do sapiens para América são diversas. Há quem sustente que ele proveio da Polinésia navegando o oceano Pacífico, assim como polinésios chegaram à Ilha de Páscoa. Há quem suponha sua vinda pelo norte da Ásia em navegação de cabotagem no mar de Bering. Um crânio feminino, que recebeu o nome de Luzia, sugere que negroides também tenham chegado à América.
Arte paleolítica – Serra da Capivara – Brasil

Contudo, a tese mais aceita, porque mais documentada, é a de que levas de asiáticos tenham atravessado a ponte que ligava a Ásia à América no estreito de Bering no final da última glaciação. Com a elevação do nível do mar no início do Holoceno, ou época atual, Ásia e America ficaram separadas pelo oceano Pacífico. A migração teria ocorrido antes do afagoamento dessa ponte natural.

Seja qual for a procedência, talvez até várias, os grupos que chegaram à América viviam em economia paleolitica. O nomadismo dos grupos paleolíticos pode explicar a migração em massa à procura de alimentos em solo virgem. Na América do norte, o clima se assemelhava ao clima euroasiático. Supõe-se que o modo de vida nas novas terras tenha se assemelhado ao da Europa e Ásia. Mas, quanto à América do Sul, o clima tropical, excessivamente úmido, pode ter favorecido um paleolítico com poucos deslocamentos, dada a fartura de alimentos. Como as sociedades paleolíticas viviam de uma economia extrativista e de subsistência, os recursos fornecidos pela natureza superavam as necessidades humanas. A vida nos trópicos era bem mais farta que no círculo polar ártico. Os deslocamentos de grupos paleolíticos da Amazônia eram bem menores que o dos povos do deserto de Atacama.

Neolítico americano

Com o instigante título “Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura”, Eduardo Góes Neves sugere a não existência de um neolítico na América do Sul por não estar a agricultura necessariamente associada à cerâmica. Ele sustenta que a agricultura na América meridional não foi tão importante como na Eurásia e que “não há uma correlação observada entre a domesticação de plantas e o início da produção cerâmica no novo mundo (...) É plausível supor que no Novo Mundo não houve pressões adaptativas para uma adoção rápida da agricultura, mesmo com um quadro de domesticação antiga de plantas, do mesmo modo que houve pouquíssima pressão para a domesticação de animais.”

A autor parece preso ainda aos modelos europeus. Pesquisadores com reflexão sobre descobertas recentes e antigas estão caminhando na direção de construir modelos de neolítico e de civilização para a América do Sul, pelo menos. Deve-se considerar, primeiramente, que o aquecimento natural do planeta, a partir de 11.700 anos antes do presente, foi muito mais acentuado no norte do Equador que no sul. Daí a resposta ao desafio representado pelas novas condições climáticas ter sido mais intensa no hemisfério norte. No sul, as florestas existentes recuaram e foram substituídas por savanas, estepes e desertos. As mudanças ambientais no hemisfério sul não foram tão fortes como no hemisfério norte. 

Cerâmica de Santarém, Brasil – neolítico avançado da América

A flora e a fauna mudaram com o novo clima. Não tanto, porém. Algumas espécies foram domesticadas para complementar o que os ecossistemas nativos forneciam. Ainda assim, agricultura e pastoreio foram inventados, abaixo do Equador, na América do Sul, na África e na Oceania. Pesquisas recentes na Amazônia vêm demonstrando que a floresta atendia às necessidades alimentares e de matéria prima de uma grande população, estimada em 10 milhões de pessoas. Técnicas avançadas de manejo florestal mostram que os povos amazônicos construíram sociedades que viviam em estado de equilíbrio com a floresta.

A relação direta entre agricultura e cerâmica, como notou Eduardo Góes Neves, de fato não existiu. Há grupos que desenvolveram técnicas de fabricação cerâmica sem necessariamente promover um desenvolvimento de igual natureza e intensidade na agricultura ou no pastoreio. 

No entanto, naquelas sociedades que alcançaram a complexidade do que se entende por civilização, a agricultura está presente como atividade básica. O milho foi domesticado na Mesoamérica, na região do rio Balsas, em torno de 7000 anos, espalhando-se rapidamente por todo o continente até a costa do atual Uruguai. Nos Andes, onde os ecossistemas eram menos abundantes que os da floresta, a necessidade da agricultura parece ter se imposto com a domesticação de grande variedade de batata, do tomate e das abóboras. As plantas com maior dispersão no continente foram o milho e o tabaco. A conclusão de Neves é a de que agricultura e cerâmica não estão tão relacionadas na América como estão na Eurásia.

Resumindo, a agricultura, na América, é mais antiga do que se supunha. Novas descobertas arqueológicas mostram que ela não teve relevância apenas nos polos andino, maia e mexicano e em áreas adjacentes. Ela também foi pujante na Amazônia, num sistema que associava manejo florestal e produção agrícola, sobretudo na confluência da Amazônia com o Cerrado. A diversidade de plantas domesticadas foi maior que o imaginado. Lembremos o milho, o cacau, o tabaco, o tomate, as batatas, as abóboras, a mandioca etc. O pastoreio não teve muita relevância talvez por grande parte da fauna nativa ser recalcitrante à domesticação. As que se deixaram domesticar foram poucas, como o lhama, a alpaca e o peru.  

A produção cerâmica foi pujante em quase toda extensão do Novo Mundo. As áreas mais significativas são a América do Norte, do sul dos Estados Unidos à América Andina e amazônica, passando pela América Central. Mas a cerâmica se estendeu por uma área bem mais ampla do território americano. Deve-se afastar o acaso e o diletantismo estruturais para explicar a origem da agricultura, do pastoreio e da cerâmica na América. Se agricultura e cerâmica americanas não aparentam relações estreitas, como na Eurásia, é temerário pensar que ambas nasceram por diletantismo dos povos americanos. Elas têm relação com o neolítico nas Américas, que apresenta características singulares. Abaixo do Equador, não houve um resfriamento rápido e intenso como acima dessa linha. As florestas e outros ecossistemas compensaram a agricultura com recursos naturais.

Enfim, é preciso construir um modelo de neolítico e de civilização para a América do Sul. Em princípio, defendemos que a cerâmica é o principal elemento distintivo desse modelo. Havendo o conhecimento de técnicas de produção de artefatos cerâmicos, podemos dizer que a sociedade está no estágio neolítico sul-americano, ainda que a agricultura seja conhecida e não praticada, já que compensada pelos recursos naturais fornecidos pelos ecossistemas nativos. As novas descobertas na Amazônia – terra preta produzida para o desenvolvimento de agrossistemas florestais, valas, paliçadas e a variedade cerâmica (algumas pressupondo especialização), concluo pelo desenvolvimento de sociedades neolíticas avançadas em vez de uma grande e difusa civilização. 

Quanto às civilizações americanas, cabe também criar um modelo próprio. Os três polos em que elas se desenvolveram – Andes, península de Iucatã e meseta mesoamericana – revelam a cerâmica e a agricultura intimamente relacionadas, como se uma não pudesse existir sem a outra. Mas precisamos considerar as questões do pastoreio, da escrita e das invenções, como a roda, por exemplo. Por outro lado, cabe notar que as técnicas de construção alcançaram níveis superiores ao das civilizações da Afroeurásia. Mais uma razão para criarmos um modelo americano de civilização.

Paleolítico e neolítico na ecorregião de São Thomé

Até que um conceito ou uma noção nova se imponha, é sempre necessária explicitação toda vez que é empregada. Podemos dispensar explicação no que tange à noção de Estado do Rio de Janeiro, mas Ecorregião de São Tomé deve ser definida nos escritos que dela se valem. Uma ecorregião se constitui de um espaço territorial com ecossistemas distintos, embora relacionados, mesmo que de biomas diferentes. A Ecorregião de São Tomé não respeita divisões administrativas. Ela se distingue na costa do Brasil por ser um grande acréscimo continental entre os rios Macaé e Itapemirim em forma de arco. Ao degrau representado pela zona serrana, a natureza acresceu uma área de tabuleiros, datados do Terciário, uma planície aluvial debruada por planícies de restinga, entre 120.000 e 2.500 anos. A ligação da zona serrana com as terras baixas é feita pelos rios Macaé, sistema hídrico Ururaí, Paraíba do Sul, Guaxindiba, Itabapoana e Itapemirim. Nessa área, três biomas se encontram: Mata Atlântica, Costeiro e Plataforma Continental com ecossistemas dos três.

Mas uma ecorregião não se limita apenas ao natural, senão que o cultural desempenha papel importante. A Ecorregião de São Tomé foi parcialmente território do grande grupo linguístico indígena macro-jê, com suas diversas línguas. Com a chegada dos europeus, ela também de distinguiu do entorno por sua economia, sociedade e cultura, com projetos políticos de emancipação em graus variados.
Há vários estudos sobre os grupos indígenas que se fixaram na Ecorregião de São Tomé. Os principais são “Considerações iniciais sobre o terceiro ano de pesquisas no Estado do Rio de Janeiro” (1969) “Pesquisas arqueológicas no Norte Fluminense: o sítio de Jurubatiba”, “Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da ilha de Santana”, “Notícias preliminares sobre o programa arqueológico do Norte Fluminense”, “Estudos preliminar dos ritos funerários do sítio do caju, RJ”, e “Pesquisas arqueológicas no sítio do Caju”, além de “Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro”, que pretende empreender uma visão de conjunto. Citam-se somente aqueles que nos permitem discutir uma possível distinção entre paleolítico e neolítico na América do Sul, com destaque para a Ecorregião de São Thomé.

A ocupação do território correspondente à ecorregião por povos nativos obedeceu aos avanços e recuos da área continental (progradação e retrogradação), assim como avanços e recuos do nível do mar (transgressão e regressão). Há 15 mil anos antes do presente, a linha costeira em todo o planeta era mais avançada que atualmente porque o nível do mar era mais baixo. Em grande volume, as águas da Terra estavam encerradas em geleiras, dominantes no hemisfério norte.

Na Ecorregião de São Thomé, a área continental era maior que a atual. O arquipélago de Santa integrava essa área. Portanto, não eram ilhas. Vários grupos indígenas ocupavam então esse vasto continente. A partir de 11.700 anos antes do presente, a temperatura média global começou a elevar-se naturalmente. Entre 7.000 e 5.100 anos antes do presente, o mar começou a transgredir sobre a área continental baixa, talvez seguindo o vale do Paraíba do Sul, e esbarrou nos contrafortes da Serra do Mar, na altura do atual Itereré. Os grupos indígenas foram abandonando as terras invadidas pelo mar e se deslocando para as terras mais altas.

A partir de 5.100 anos antes do presente, o mar começou a regredir. Os rios da futura Ecorregião de São Thomé, com destaque para o Paraíba do Sul, o maior entre eles, foram transportando sedimentos da zona serrana e dos tabuleiros, formando a grande planície aluvial do Paraíba do Sul-sistema Ururaí e as planícies menores dos vales do Macaé (Severina), Guaxindiba, Itabapoana e Itapemirim.  Novamente, os povos indígenas foram acompanhando o avanço continental. A linha de costa se estabilizou (sempre de forma provisória) por volta de 2.500 anos antes do presente. A formações rochosas de Santana, de continente passaram a península e a arquipélago com a elevação do nível do mar, voltando à condição de arquipélago com o descenso do mar.

Há 1.260 anos antes do presente, com margem de erro de cerca de 330 anos, ou seja, no século XI da era cristã, um grupo indígena instalou-se na ilha maior do Arquipélago de Santana. Havia nela água doce em abundância. Ainda no século XVI, navios europeus ancoravam ao seu redor para abastecerem-se de água sem correr o risco de ataques indígenas na foz do rio Macaé, como informam Jean de Léry e Gabriel Soares de Sousa.

Além de água, esse povo encontrou alimento em abundância. Sua atividade principal era a pesca. Até o venenosíssimo baiacu era preparado de modo a se tornar comestível. Mas esse grupo também complementava a pesca com a coleta de equinodermos, moluscos, crustáceos e outros invertebrados, e também com a caça de quelônios, aves e mamíferos. As aves transformaram a ilha num ninhal. Além se sua carne, os habitantes da ilha alimentavam-se também de seus ovos. Caçavam igualmente pequenos mamíferos que habitavam a ilha e o continente, eventualmente visitado pelos indígenas. O povo que habitou a ilha desconhecia a cerâmica, usando como recipientes carapaças de moluscos e cascos de tartaruga. 

Podemos considerar seu modo de vida como paleolítico, já que não havia agricultura nem cerâmica. Mas a fartura de alimentos dispensava o nomadismo, como não acontecia com os grupos paleolíticos da Eurásia. A própria ilha inibia os deslocamentos territoriais, havendo, no máximo, visitas eventuais ao continente. Esse grupo pode ilustrar o modelo de paleolítico na América do Sul. 

Examinando os sítios do Caju e de Jurubatiba, concluiremos que havia assentamentos. No sítio de Santana também havia. Contudo no Caju e em Jurubatiba encontraremos um elemento ausente em Santana: a cerâmica. Esse elemento seria insuficiente para caracterizar os dois grupos como neolíticos embora a agricultura (conhecida mas não praticada), do pastoreio, da tecelagem, do polimento da pedra e da metalurgia. 

A agricultura era conhecida, sobretudo a da mandioca, mas sofreu inibição diante dos fartos recursos fornecidos pela natureza, como frutos, moluscos, crustáceos, peixes, aves e mamíferos. O “Roteiro dos Sete Capitães” registra essa fartura com admiração. Por que investir na agricultura se a natureza era pródiga? Quanto ao pastoreio, além de não existirem animais facilmente domesticáveis na Ecorregião de São Thomé, a coleta, a pesca e a caça compensavam com vantagem a domesticação e a criação. A tecelagem era substituída por penas tomadas de aves, além de ser desnecessária como proteção contra o frio em clima tropical.
Cerâmica e enterramento no sítio arqueológico do Caju – Campos dos Goytacazes. Foto: Instituto de Arqueologia Brasileira 

O polimento da pedra não era comum nas planícies fluviais e marinhas da ecorregião por uma razão muito simples: a inexistência de pedra como matéria-prima. Contudo, ela existia em abundância na zona serrana da ecorregião e era polida para vários usos. Observe-se que era um polimento de qualidade. A metalurgia fica para os povos considerados civilizados, como os andinos, os centro-americanos e os habitantes da meseta mexicana.

Assim, sugere-se a construção de modelos adequados à América do Sul. Comportamentos paleolíticos, que dispensam o nomadismo, e neolíticos, que não necessariamente aliam cerâmica à agricultura nem adotam um modo de vida plenamente sedentário, como os modelos euroasiáticos.

Sugere-se também uma reflexão sobre os conceitos de história e pré-história. Sistemas de escrita ainda continuam sendo utilizados para marcar o fim da pré-história e o começo da história, como se eles não fossem produto da dinâmica interna das sociedades. Nos grupos paleolíticos não havia escrita sistematizada, mas a cultura material não deixa de ser uma forma de escrita que pode ser lida por especialistas. Assim, existe um contínuo descontinuado nas sociedades que derivam de sociedades paleolíticas e neolíticas, criando sistemas de escrita. É o que nos ensina Henri Moniot. A sugestão é nomear as sociedades de acordo com sua economia, organização interna e tecnologia. Exemplo: sociedades paleolíticas, sociedades neolíticas e sociedades civilizadas, em lugar de pré-história e história.

Cabe ainda observar que a história não começa na civilização chinesa e hinduísta quando a civilização ocidental as abalroa. Ela passa a ser contada de forma diferente. A China e a Índia inserem o domínio ocidental como uma fase da sua história, apesar de continuar a denominar as sociedades neolíticas e paleolíticas que as antecedem de pré-história. Na América, este problema se acentua. Por mais que se releve a história asteca, maia e inca, a história verdadeira vem embarcada nas caravelas de Cristóvão Colombo. Todos os povos ágrafos são jogados para os porões da pré-história escancaradamente. Os povos paleolíticos e neolíticos da América tinham história. O ocidente, com sua expansão, também as abalroa. A proposta é considerar o ocidente como um acréscimo a histórias existentes, não jogá-las num saco.

Para saber mais

  • DIAS JUNIOR, Ondemar F. Considerações iniciais sobre o terceiro ano de pesquisas no Estado do Rio de Janeiro. “Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas 3-Resultados Preliminares do Terceiro Ano (1967-1968)”. Publicações Avulsas nº 13. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1969. 
  • DIAS, Ondemar e NETO, Jandira. “Pesquisas arqueológicas no sítio do Caju”. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2014.
  • FREIRE, José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1977.
  • GABRIEL, Adelmo Henrique Daumas e LUZ, Margareth da (Orgs.); FREITAS, Carlos Roberto B.; SANTOS, Fabiano Vilaça dos; KNAUS, Paulo; SOFFIATI, Arthur (notas explicativas) e GOMES, Marcelo Abreu. “Roteiro dos Sete Capitães”. Macaé: Funemac Livros, 2012.
  • HEREDIA, Raimundo Osvaldo; LIMA, Tania Andrade; e SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. “Pesquisas arqueológicas no norte fluminense: o sítio de Jurubatiba”. Arquivos do Museu de História Natural vol. VI-VII. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1981-1982.
  • LÉRY, Jean de. “Viagem à terra do Brasil”. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961.
  • LIMA, Tania Andrade e SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. Zoo-arqueologia: alguns resultados para a pré-história da Ilha de Santana. “Revista de Arqueologia 2 (2)”. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, jul/dez de 1984.
  • LOPES, Reinaldo José. “1499 - Brasil antes de Cabral”. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.
  • MACHADO, Lilia Cheuiche; SENE, Glaucia Malerba; e RIBEIRO SILVA, Laura P. Estudo preliminar dos ritos funerários do sítio do Caju, RJ. “Revista de Arqueologia” v. 8, 1. São Paulo: Sociedade de Arqueologia Brasileira, 1994. 
  • MONIOT, Henri. “A história dos povos sem história”. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org.) “História: novos problemas”, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
  • NEVES, Eduardo Góes Neves. Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura. In: BARRETO, Cristiana, LIMA, Helena Pinto e BETANCOURT, Carla Jaimes (org). “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese”. Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016.
  • SOUSA, Gabriel Soares de. “Tratado descritivo do Brasil em 1587”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
  • SOUZA, Alfredo A. C. Mendonça de; LOTUFO, Cesar Augusto; SOUZA, Joel Coelho de e SOUZA, Murilo Osmar Coelho de. Notícias preliminares sobre o programa arqueológico do Norte Fluminense. Munda nº15. Coimbra: Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1988. 

Postar um comentário

0 Comentários