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Lagoa do Cantagalo

Por Arthur Soffiati

Quase nenhum morador de algum local do município de Campos sabe o terreno que tem sob os pés. Em outros municípios também. Não sabe se está se pisando um terreno pedregoso, argiloso, barrento e arenoso. Nas cidades, o asfalto afastou o prazer de consultar o arquivo dos pés, que um professor do historiador Simon Schama considerava fundamental para o conhecimento de uma região.

Ao andar em São Fidélis, poucos se dão conta de que caminham na zona serrana da região, o que equivale a rochas na forma de pedra, mesmo não podendo vê-las. Já quem percorre a área de Guarus, está andando sobre o terreno argiloso grosso dos tabuleiros. Cruzando o rio, o terreno sob Campos é a argila fina trazida pelo Paraíba do Sul que forma a maior parte da planície. Mas no Açu, por exemplo, o que jaz por baixo é a areia da grande restinga formada pelo mar. Em todos os quatro tipos de terreno, existem lagoas. Na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, existem lagoas no piso pedregoso, como a lagoa de Imburi, hoje destroçada e esquecida. Na zona dos tabuleiros, muitas são as lagoas, a maioria delas foi mutilada pela agropecuária e pela urbanização.

Uma delas, merece a minha atenção neste artigo. Trata-se da lagoa do Cantagalo, esquartejada pelo avanço da cidade em Guarus. Ela se assemelhava a uma aranha e se ligava à lagoa das Pedras. Normalmente, as pessoas conhecem a lagoa do Vigário, mas não as outras lagoas. Já escrevi muito sobre as lagoas dos tabuleiros. Quero escrever particularmente sobre lagoa do Cantagalo.
1- Lagoa do Cantagalo; 2- lagoa das Pedras; 3- lagoa Limpa. Mapa desenhado por Alberto Ribeiro Lamego em 1954

No papel, órgãos públicos dizem que tudo está bem com o que sobrou da lagoa do Cantagalo. No terreno, verifica-se que tudo vai mal. Os tabuleiros da margem esquerda do rio Paraíba do Sul eram cobertos por florestas, que serviram de lenha às usinas principalmente, mas não unicamente. Anos a fio de desmatamento na crença de que as matas nunca acabariam. Restou um fragmento ao sul da lagoa das Pedras. A expectativa foi a mesma em relação à Mata Atlântica. Dela, restam apenas 10% da extensão original. O mesmo acontecerá com a Amazônia. Nunca li que a Amazônia recuperou áreas ocupadas pelo agronegócio. Encontro apenas notícias de que ela sofreu desmatamento grande ou pequeno. Ela só diminui com maior ou menor velocidade. Com o governo brasileiro atual, ela já perdeu uma área descomunal. Mas os números não devem ser divulgados para não comprometer a imagem do Brasil. É o que diz nosso presidente.
Lagoa do Cantagalo: 1- fragmento setentrional; 2- fragmento central; 3- fragmento meridional

A mata em torno da lagoa do Cantagalo foi transformada em dinheiro e desapareceu. Alberto Ribeiro Lamego ainda registrou a lagoa na década de 1950. Sem floresta em suas margens, Guarus cresceu sobre ela e a fragmentou em três partes. Como é comum na região, cada parte recebeu um nome novo. O fragmento do norte é hoje conhecido como lagoa da Boa Vista. O do centro ainda tem água. O do sul fica perto da margem esquerda do Paraíba do Sul. A lagoa se ligava a ele pelo canal São José. A urbanização avança sobre os fragmentos restantes, embora ainda exista considerável área aberta. A situação do que restou da lagoa é crítica, por mais que órgãos públicos tenham concluído o contrário. Os três fragmentos têm dono. Não me consta que uma lagoa tenha proprietário pela legislação vigente no Brasil. 
Fragmento meridional da lagoa do Cantagalo alagado pela enchente de 2007

Os “donos” vão vendendo lotes e a cidade vai crescendo. No fim, a lagoa some. Vejam o caso ilustrativo da lagoa do Vigário. Em 2007, o fragmento sul da lagoa foi inundado pela enchente do rio Paraíba do Sul. As águas ultrapassaram a rodovia e inundaram a lagoa. Rapidamente, a prefeitura drenou o fragmento e bloqueou o canal sob a estrada.
Anúncio de venda de terras no leito na lagoa do Cantagalo

Na revisão do Plano Diretor de 2008, feita em 2019, em respeito à lei, foi proposto um traçado em Guarus, englobando as lagoas mais ameaçadas para fins de proteção. Qualquer chuvinha em Campos alaga vários pontos da cidade. Todos eles são antigas lagoas mal drenadas, impermeabilizadas pela pavimentação. Em Guarus, ainda existem lagoas que podem ser aproveitadas como piscinões a céu aberto. Não se trata de defender as lagoas por nostalgia. Elas têm um fim prático e social. Mas a cidade as aterra, as ocupa, as impermeabiliza, as polui, as assoreia e as torna insalubres. Em breve, Guarus será uma nova Campos. O traçado figura no mapa abaixo. Esperamos que o poder público proteja as lagoas de Guarus porque, do contrário, elas vão existir só em fotografias e em artigos como este.  
Polígono envolvendo as lagoas mais ameaçadas de Guarus para fins de proteção

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