Clássico espanhol leva 60 mil pessoas a estádio, mas nem um sexto desse público acompanhou os jogos de estreia do Brasileiro para mulheres
Enquanto a Espanha vivia um dia histórico para o futebol feminino no último domingo (17), o Brasil presenciava cenas prosaicas de arquibancadas vazias na estreia do principal campeonato nacional para mulheres. O Wanda Metropolitano, estádio do Atlético de Madri, recebeu 60.739 torcedores para acompanhar o clássico do time da casa contra o Barcelona pela liga local, superando o maior público registrado até então em uma partida entre clubes na modalidade. Nos gramados brasileiros, a realidade é outra: somando os espectadores de todos os sete jogos femininos do fim de semana, o número não chega a um sexto do público na capital espanhola. Menos de 10 mil pessoas prestigiaram a primeira rodada do Brasileiro 2019 para mulheres, mesmo com entrada franca na maioria dos jogos – os ingressos na Espanha custavam a partir de cinco euros (cerca de 22 reais), com acesso gratuito somente aos sócios do Atlético.
A Arena da Amazônia, palco da Copa do Mundo de 2014, contabilizou o maior público da rodada de abertura no embate entre Iranduba-AM e Flamengo-RJ, com 3.522 pagantes. A equipe de Manaus, aliás, foi responsável pelo recorde da competição em 2017, levando mais de 25 mil pessoas ao estádio na semifinal contra o Santos. O entusiasmo dos torcedores transformou a capital amazonense também na do futebol feminino no país. O episódio, no entanto, é um ponto de inflexão no cenário nacional, cujos números poucas vezes ultrapassam os mil espectadores. O confronto Vitória-BA x Audax-SP, no sábado, teve apenas 135 presentes. Um dia depois, Santos e Fox Cataratas-PR jogaram para cerca de 200 pessoas, como informou a assessoria do clube paulista. Ao mesmo tempo, Avaí/Kindermann-SC e Ferroviária-SP se apresentavam diante de 267 pagantes.
As companheiras de seleção brasileira Andressa Alves e Ludmila Silva se enfrentaram no espetáculo protagonizado no Wanda Metropolitano. Camisa 10 do Barcelona, Andressa disse ter ficado muito feliz com a recepção do público. “A atmosfera foi incrível, a torcida não parava de gritar, estava muito bonito o estádio lotado. Foi um dia que vai ficar marcado na cabeça de todas as meninas e torcedores presentes”, relatou. Para ela, a divulgação nas mídias e o marketing feito pelo Atlético foram preponderantes para a presença em massa dos torcedores:
“O Atlético divulgou que o jogo ia ser no Wanda Metropolitano dois meses antes da partida. Estava em todos os lugares em Madri, em todas as redes sociais das jogadoras, dos jogadores e do clube. No Brasil, não tem essa divulgação. As pessoas às vezes nem sabem que tem um clássico, um jogo importante”, comparou, afirmando que as principais diferenças entre os países são investimento, apoio e salário. “Aqui recebemos muito melhor. Estrutura, organização e divulgação ainda estão um passo à frente em relação ao Brasil”, disse a primeira brasileira contratada pelo Barcelona, que até pouco tempo atrás, desfilava suas habilidades diante de pequenas plateias e gramados irregulares.
De acordo com a professora da UFRGS Silvana Goellner, doutora e especialista em gênero, esporte e futebol feminino, a quebra do recorde na Espanha é um marco para a presença das mulheres no futebol e expõe o interesse do público. “Isso não é recente. Resulta de uma trajetória de resistência das mulheres que não desistem da modalidade, apesar de serem muito deficientes ainda as condições que têm para se inserir e permanecer no futebol”, afirma.
Para desenvolver a modalidade no Brasil, a pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória ao Esporte defende a criação de uma cultura que dê visibilidade à presença feminina no futebol. Segundo ela, o cenário é complexo e exige iniciativas de vários atores, como CBF, federações, poder público e imprensa. “A transmissão dos campeonatos, a divulgação das trajetórias das jogadoras, a venda de produtos esportivos, o reconhecimento do futebol como profissão, e não apenas ocupação, são algumas das frentes que precisam ser urgentemente implementadas com vistas a tornar a modalidade mais conhecida como um espaço de empoderamento, socialização, educação e renda de mulheres”, sustenta Goellner.
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou, para esta temporada, uma parceria com o Twitter para transmitir um jogo ao vivo por rodada, embora não tenha firmado ainda acordo pelos direitos de transmissão na televisão. A entidade ampliou o calendário da modalidade e espera atrair novos anunciantes, já que não há por enquanto um patrocinador fixo. Um levantamento da Folha de S. Paulo mostra também que apenas 8 das 52 equipes femininas registraram todas suas jogadoras com carteira profissional. Como contrapartida, algumas meninas recebem bolsas em faculdades ou ajudas de custo abaixo de um salário mínimo. Na Espanha, ao contrário, é mais habitual as atletas cursarem ensino superior: de bióloga e médica até estudantes de ciências do esporte e arquitetura estiveram em campo no clássico espanhol.
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O reconhecimento da desigualdade em relação ao futebol masculino é o primeiro passo a ser dado, na visão de Goellner. “Toda mudança requer investimento e resistência. É necessário lutar e muito para que as mulheres tenham condições menos desiguais no esporte, em especial no futebol. Vivemos em um país no qual as mulheres são alvo de violências diversas. Não podemos analisar o futebol distante dessa realidade”, argumenta a pesquisadora. A depender de seu otimismo e sua vontade, o futebol feminino viveria tempos áureos: “O caminho é longo e trilhá-lo é mais que necessário”.
HISTÓRICO DOS PÚBLICOS
O maior público em um jogo de futebol feminino aconteceu na Copa do Mundo de 1999. O estádio Rose Bowl, em Pasadena, reuniu 90.185 torcedores na final entre EUA e China. Em 2012, a decisão das Olimpíadas de Londres contou com a presença de 80.203 pessoas, em Wembley, na vitória das americanas sobre as japonesas.
Em uma partida entre clubes, desde 1920, quando 53 mil espectadores assistiram ao confronto entre Dick, Kerr’s Ladies e Helen’s Ladies, no Goodison Park, o público não era superado. A segunda posição cabia a Tigres e Monterrey, que se enfrentaram pelo campeonato mexicano diante de 51.211 espectadores. Na Espanha, o recorde fora estabelecido ainda este ano no duelo entre o próprio Atlético de Madri e o Atlhetic Bilbao, em San Mamés.
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